quinta-feira, maio 29, 2014

OS NÁUFRAGOS

Coincidiam no descontentamento face ao estado do país, que se vinha degradando há décadas. Idealistas, ambicionando desde sempre um mundo melhor, divergiam no entanto quanto à solução capaz de gerar uma ruptura profundamente transformadora. Todos os dias, ao amanhecer, desciam juntos até à praia...

- As coisas só podem mudar se as pessoas decidirem não votar. Ir às urnas é legitimar o exercício do poder, e está mais do que na altura de tirar a legitimidade a este poder que se vem perpetuando. A abstenção total representaria a falência do sistema, que não teria outra hipótese se não a de se refundar. É nisso que temos de investir, em convencer as pessoas a recusarem-se a participar no sufrágio, a não ir a jogo. O poder do direito de voto está em não exercer esse direito, e é disso que os partidos têm medo. "Se o voto mudasse alguma coisa, votar era proibido."

- Lá estás tu a fantasiar... Uma abstenção dessas nunca vai acontecer, estou farto de te dizer. Sabes bem que os aparelhos partidários movimentam muita gente. Haverá sempre quem vá às urnas, por inconsciência, por convicção, por conformismo, por fidelidade, por interesse, porque foi um direito que se conquistou, porque sim, porque não, eu sei lá porquê. E hão-de votar sempre nos mesmos, alternado aqui e ali. A abstenção favorece os partidos do "arco", consecutivamente eleitos por uma minoria que não se demite de lá ir fazer a cruzinha no boletim... Já para não falar do potencial espaço que abre à ascensão dos extremos... A solução passa por convencer quem se abstém a votar nos pequenos partidos com gente séria, que os há, e a dar a oportunidade a quem nunca pôs o cu no Parlamento. Há que levar gente nova para a Assembleia, baralhar tudo e voltar a dar. É disso que temos de convencer as pessoas. Toca a votar! "Se a abstenção mudasse alguma coisa, votar era obrigatório."

- Impossível. E dizes tu que estou a fantasiar... Nunca vais conseguir mobilizar toda a gente, nem sequer muita. A luta da maioria é outra, não vês? Procuram sobreviver, têm lá tempo para pensar a política. Já estou a imaginar o tipo lá da rua a ler programas eleitorais entre piropos à mulher do vizinho... Havia de ser giro: "Ó flor, com que partido te identificas mais quanto à questão da imigração? Dá para entrar, ou achas que é melhor não?" Não me faças rir... Só a abstenção tem hipóteses: parte não vai votar porque não é capaz de querer, a outra não vai porque escolhe não o fazer. Greve ao voto, é o que te digo...

- Isso nunca vai acontecer. Há sempre uma minoria que vota...

- Isso é que nunca vai acontecer. Há sempre uma maioria que não vota...

Pés na areia, aí se sentavam, dia após dia, já em silêncio, frente ao mar. E aí ficavam, embalados pelo vaivém da ondulação, olhos postos no espelho infinito, eternamente à espera de um barco que teimava em não passar...

segunda-feira, maio 26, 2014

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"Once upon a time there was a bear and a bee who lived in a wood and were the best of friends. All summer long the bee collected nectar from morning to night while the bear lay on his back basking in the long grass. When winter came the bear realised he had nothing to eat and thought to himself: 'I hope that busy little bee will share some of his honey with me.' But the bee was nowhere to be found - he had died of a stress induced coronary disease."

(Banksy, Wall and Piece)

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"I believe that we should read only those books that bite and sting us. If a book we're reading does not rouse us with a blow to the head, then why read it?"

(Philip Roth)

sexta-feira, maio 16, 2014

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"Aceitei como natural ser o dever da Alemanha, para bem da humanidade, impor o nosso modo de vida a raças e nações inferiores, as quais, talvez por causa da sua inteligência limitada, não compreenderiam os nossos propósitos."

(Henry Metelmann, Through Hell for Hitler)

Arte Peripoética

Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de ser
contra a maneira do tempo
esta maneira de ver
o que o tempo tem por dentro.
Aristóteles diria
entre dois goles de chá
que o melhor ainda será
deixar o tempo onde está
pô-lo de perto no tema
e de parte na poesia
para manter o poema
dentro da ordem do dia.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só.
Ele sabia que o poeta
depois de tudo inventado
depois de tudo previsto
de tudo vistoriado
teria de fazer isto
para não continuar
com que já estava acabado
teria de ser presente
não futuro antecipado
não profeta não vidente
mas aço bem temperado
cachorro ferrando o dente
na canela do passado
adaga cravando a ponta
no coração do sentido
palavra osso furando
pele de cão perseguido.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de riso
que é a mais original
forma de se ter juízo
e ser poeta actual.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
também diria antes só
do que mal acompanhado
antes morto emparedado
em muro de pedra e cal
aonde não entre bicho
que não seja essencial
à evasão da palavra
deste silêncio mortal.

(Ary dos Santos, Adereços, Endereços, Lisboa, 1965)

quinta-feira, maio 08, 2014

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PROTESTO

Este tempo e este lugar
não fui eu que os escolhi.
Porque me exigem, então,
que a eles me subordine?
Quero dizer o que quero
e ir para o mundo que quero
pelo caminho que quero.
E, mesmo que mo não deixem,
não deixarei de querê-lo.

(Armindo Rodrigues)

sexta-feira, maio 02, 2014

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"A água estava quieta e escura, lisa como um espelho. [...] viu-se reflectido nela. Foi com ternura que se observou, numa carinhosa piedade por si mesmo. Para os espelhos nunca era invisível e, diante dos espelhos, achava-se belo e triste, solitário e pobre, sem nada nem ninguém, tendo apenas por companhia a sua imagem. E era por isso que tanto gostava de banhar-se nos rios, como se mergulhar neles e agitar-se nas águas fosse a maneira de unir-se àquela imagem fascinante que nunca, senão assim quebrada por ele mesmo, era invisível e unida a ele."

(Jorge de Sena, O Físico Prodigioso)