quarta-feira, outubro 31, 2012

...

"- Então que é feito, homem? Não o vejo há muito tempo e tenho pena. Olhe que ainda outro dia falei de si.
- Sim?
- É verdade. Sabe que necessitamos de gente para a Junta de Freguesia e eu sugeri o seu nome. A verdade, meu amigo, é que todos temos obrigação de fazer qualquer coisa. Que diz da minha ideia?
- Nem pense nisso, sr. Engenheiro. Ainda que mo peçam, nunca entrarei para essas coisas. Limito-me a fazer aquilo que sei: chapéus, bonés e barretes.
- Pois tenho pena, meu amigo. Vocês passam a vida a dizer mal e, quando se trata de fazerem qualquer coisa, desaparecem todos.
- Mas eu não digo nada, sr. Engenheiro, nem mal nem bem. Essas coisas não me interessam nem me afectam. De qualquer forma, ainda que eu dissesse mal, não entrava para a Junta de Freguesia ou para qualquer outra junta.
- É o que eu digo: para dizerem mal estão por aqui; para fazerem qualquer coisa, desaparecem.
Não consigo entender o riso. Alguma coisa me há-de fazer rir! O Rodrigues não compreende porque me estou a rir.
- Por mais que queira, não compreendo nem vejo que isso tenha graça. Olhe que é um triste sinal dos tempos e das pessoas...
- Oiça, sr. Engenheiro Rodrigues, olhe que eu não me estou a rir do que o sr. disse. Pelo contrário, admiro a sua ingenuidade.
- Ingenuidade?
- Imagine o sr. Engenheiro que eu fora condenado à morte por uma sentença injusta e que passava os meus dias na cela criticando a sentença e o estado de coisas que a tornara possível. Está a imaginar isto? Pois imagine agora que o carcereiro, farto das minhas críticas permanentes, me vinha propor que eu o auxiliasse a fazer uma corda melhor para a forca, isto sabendo eu que acabaria por ser enforcado por essa corda... Imagine agora que o carcereiro, perante a minha recusa, se afastava pelo corredor fora resmungando que os presos passam a vida a criticar mas que, quando se lhes oferece a possibilidade de concorrerem para o melhoramento das coisas, se recusam a auxiliar os que trabalham cheios de boa vontade. Está a perceber? Não acha que isto revelaria ingenuidade?"

(Luis de Sttau Monteiro, Um Homem não Chora)

sexta-feira, outubro 26, 2012

...

Ao almoço, na pequena mesa ao lado da minha, sentam-se dois tipos novos. Assim que se encontram frente a frente, começam a tratar de se evitar. Um deles faz chamadas constantemente; o outro, carrega compulsivamente nas teclas do telefone; o primeiro saca de um iPad, navega no Facebook, envia mails... Enquanto isso, vão-se mantendo à superfície de uma conversa absolutamente abstrusa, totalmente desconexa. Raramente se olham. E eu próprio, contagiado pelo constrangimento, começo a ansiar pela chegada da comida...

Finalmente, as mãos abandonam os gadgets. O silêncio é apenas interrompido pelo ruído dos talheres, ou pela ocasional interjeição que atesta a qualidade da refeição. Podemos relaxar os três, agora que aquilo que não podia ser dito se esconde, tal como as suas cabeças, no fundo dos pratos...

...

Se não for muito incómodo, gostaria de pedir a toda a classe política, opinadores de serviço e comentadores ocasionais para, quando se referirem aos portugueses, o fazerem da seguinte forma: "Todos os portugueses menos o Filipe..." Sim, qualquer que seja a circunstância. Muito obrigado.

quinta-feira, outubro 25, 2012

...

"O que há de novo no mundo contemporâneo não é o facto nem mesmo o grau de inumanidade que a persistência da fome, da doença, da total exclusão de milhões de homens de um mínimo de dignidade ou até da hipótese da sobrevivência revela, mas a constatação de que esse fenómeno coexiste com o espectáculo de uma civilização aparentemente dotada de todos os meios, de todos os poderes, para a abolir."
(Eduardo Lourenço, O Esplendor do Caos)

quarta-feira, outubro 24, 2012

...

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

(António Aleixo)

segunda-feira, outubro 22, 2012

...

"[...] depois do surto do 25 de Abril, os ânimos voltaram a uma espécie de apatia, tanto no campo político como, digamos, no da cidadania. As universidades, que vivem em círculo fechado, mas também o regime partidário, as suas práticas e os seus discursos, o «autismo» dos governos e a sua visão medíocre do futuro, a falta de imaginação e a falta de coragem políticas contribuíram largamente para que os reflexos herdados da ditadura demorassem (e demorem) a dissolver-se. Refiro-me ao medo, à passividade, à aceitação sem revolta do que o poder propõe ao povo. Como se, tal como antigamente, a força de indignação, a reacção ao que tantas vezes aparece como intolerável, escandaloso, infame na sociedade portuguesa (tolerado, aceite, querido talvez pela maneira como as leis e regras democráticas se concretizam na sociedade, quer dizer no húmus das relações humanas), se voltasse para dentro num queixume infindável quanto à «república das bananas» ou «a trampa» que decididamente constituiria a essência eterna de Portugal, em vez de se exteriorizar em acção." (José Gil, Portugal, Hoje - O Medo de Existir)

sexta-feira, outubro 19, 2012

1943-2012

AMOR COMO EM CASA

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

(Manuel António Pina, Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde)

quarta-feira, outubro 17, 2012

...

"Até parece que estou a tentar convencer-vos de um sonho - tentativa inútil, porque o relato de um sonho não transmite a sensação-sonho, aquele emaranhado de absurdos e surpresas, o desespero na angústia de sermos aprisionados, a sensação de sermos presas do inacreditável que é verdadeira essência dos sonhos...
Fez um instante de silêncio.
- ... não, é impossível; é impossível transmitir a sensação-vida de uma época que vivemos - aquilo que constrói as suas verdades, o seu significado - a sua penetrante e subtil essência. É impossível. Vivemos como sonhamos - sós..."

(Joseph Conrad, O Coração das Trevas)

segunda-feira, outubro 15, 2012

Mr. Nobody

quinta-feira, outubro 11, 2012

...

"[...] É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja".

(Jorge de Sena)

terça-feira, outubro 09, 2012

...

"[...] a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores"

(Natália Correia, Autogénese)