quinta-feira, maio 27, 2010

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"[...]
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo
[...]"

(Daniel Filipe, A Invenção do Amor)

quarta-feira, maio 26, 2010

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"Há uma tela de Rochegrosse intitulada Angoisse humaine. É um quadro que representa a Vida. No primeiro plano muitas criaturas erguem o braço para chegar mais alto. Homens de casaca tão correctos como se fossem para um baile. Há mulheres decotadas vestidas em rigor. Homens condecorados e homens banais, velhos e moços, misturam-se e empurram-se, disputando-se numa agonia pavorosa, num combate sem nome.
Aquele monte é a Ambição de subir, de que fala Vieira. Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam, agarrando-se de pés e mãos, como se após, viessem também correndo numa perseguição fantástica, as ondas dum novo dilúvio.
Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho que na vida leva ao triunfo é uma cena medonha que mais parece a fuga duma derrota.
Todas aquelas cabeças têm o rictus dum Tântalo supremo. São gastas, cansadas, lívidas. Os rostos são pálidos, suados, cor de terra, um não sei quê de loucura e de pesadelo; os olhos brilhantes, emoldurados no bistre das insónias e dos tormentos, as mão crispadas, rapaces, em foice, os vultos rembrandtescos. São ferozes e são crúéis.
A tela é violenta e verdadeira. A vida é aquilo, assim enérica, sinistra, brutal. Não há trégua, não há descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o.
Há um homem de peitilho engomado e cabelo colado sobre as frontes que, sentado, morto, segura não mão inerte e suicida, a coronha dum revólver.
Um grande homem brutal, de camisola, pulou, destruiu o último tapume, frágil afinal como uma convenção, e continua avançando sempre.
Toda aquela populaça, todas aquelas criaturas cuidam só em subir. A certa altura a Morte fixa-as com suas pupilas de aço, hipnotizantes, e elas caem, rolam, afundam-se lá em baixo, onde as espera uma cova aberta, algumas sem terem chegado, outras que pararam finalmente, levando nos olhos um pavor incerto, qualquer coisa de espantoso e indescritível que faz parar o sangue nas artérias.
Por cada um que tomba avançam mil. Trava-se um combate em que o mais cruel, o mais forte, o mais canalha, é o que triunfa. Nada de piedade nem de compaixão. Se não esmagares serás esmagado. Não há tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar seja como for, custe o que custar.
A vida é dos de coração gelado e hirto. Amanhã é tarde, depois é impossível. Tudo na vida é mudável, tudo na vida é transitório. Tudo passa, tudo esquece. A criança será homem, o lacaio será senhor, o arbusto será árvore, o ontem será hoje, o bom será mal. Ai dos que param, ai dos vencidos!
Aquela cena é bem a Vida, esta luta brutal e torturadora que começa quando o sol se ergue loiro e triunfante para só terminar às horas em que tudo parece desolado e morto.
O crepúsculo cai suavemente. Ao longe a casaria branca duma cidade adivinha-se. E as altas chaminés das fábricas atiram para os astros o seu fumo apodrecido e gasto, como um hálito maldito e dosolador."
(Albino Forjaz de Sampayo, Palavras Cínicas)

Lei

Nascer e ficar aqui
Onde os pés sentem firmeza
Subir ao céu em beleza,
Mas em sonhos, em mentira,
Não vá deixar-nos a lira
De mal com a natureza.

Ser homem como outros homens
Na terra onde se alimenta
O sangue que nos sustenta
A pele e o coração.
Lutar por todo aquele pão
Que corre da placenta.

Dar alma a um deus dos nossos,
Por uma religião
Com bases na condição
E na dureza dos ossos.
E não rezar padre-nossos
Qualquer que seja a razão.

Trabalhar quanto é preciso
Com alegria e justiça.
Ter um pouco de preguiça
Quando o sol se descobrir.
E dar o sexo à mulher
Que mais fundo nos pedir
E mais fundo nos souber.


(Miguel Torga, Libertação)

terça-feira, maio 25, 2010

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"Olharei a morte com um rosto tão calmo (...). Submeter-me-ei a todos os trabalhos, por mais rudes que sejam, sustentando o corpo através da alma. Desprezarei igualmente as riquezas, quer estejam presentes ou ausentes, e não ficarei mais triste quando se encontrarem fora de minha casa, nem mais orgulhoso se me rodearem com o seu brilho. Permanecerei insensível às idas e vindas da sorte. Considerarei todas as terras como minhas e as minhas como pertencendo as todos. Viverei com o pensamento de que nasci para os outros e agradecerei à natureza, pois não sei como poderia ela salvaguardar melhor os meus interesses! Ela deu-me a todos, ela deu-me todos. Tudo o que tiver, nem o guardarei de um modo sórdido, nem o desperdiçarei de modo pródigo. Pensarei que nada possuo de melhor do que aquilo que dou como deve ser. Não avaliarei os benefícios, nem pelo seu número, nem pelo seu peso, mas apenas segundo a estima que me merecer aquele que o recebe. Nunca pensarei que dou de mais àquele que é digno de receber, Não farei nada por causa da opinião dos outros, farei tudo de acordo com a minha consciência. Pensarei que toda a gente me olha quando for a única testemunha dos meus actos... Na bebida e na comida terei como único objectivo a satisfação das necessidades naturais, e não encher e depois esvaziar o estômago. Serei agradável para com os meus amigos, indulgente e afável para os inimigos. Ficarei convencido mesmo antes que me peçam e anteciparei os pedidos honestos. Terei em conta que a minha pátria é o universo, governado pelos deuses que estão acima de mim e em volta de mim vigiando os meus actos e as minhas palavras. Quando a natureza me voltar a pedir a vida ou quando a minha razão a fizer cessar, partirei testemunhando que acarinhei a consciência honesta e os nobres estudos, e que não prejudiquei a liberdade de ninguém, e a minha menos do que qualquer outra." (Séneca, Da Vida Feliz)

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"[...] a morte nada é, pois todo o bem e todo o mal residem na sensação, e a morte é a erradicação das sensações. Por conseguinte, a adequada tomada de consciência de que a morte nada tem a ver connosco faz com que o carácter mortal da vida não provoque cuidados: não concedendo-lhe uma duração infinita, mas suprimindo-lhe o desejo de imortalidade. Nada há de temível na vida, para quem está verdadeiramente consciente de que nada existe também de terrível em não viver.

Estúpido é pois aquele que afirma ter medo da morte não porque sofrerá ao morrer mas por sofrer com a ideia de que ela há-de chegar. É verdadeiramente em vão que se sofre por esperar qualquer coisa que não nos causa qualquer perturbação! Assim, o mais temível dos males, a morte, nada tem a ver connosco: quando somos, a morte não é, e quando a morte é, somos nós que já não existimos! Ela não tem qualquer relação nem com os vivos nem com os mortos, pois para uns ainda não é, e os outros já não são. E, no entanto, a multidão foge da morte como se ela fosse quer a maior das infelicidades quer o ponto final nas coisas da vida.

O sábio, pelo contrário, não teme já não estar vivo: viver não lhe pesa sem que por isso ache que é um mal não viver. Tal como não escolhe nunca a alimentação mais abundante mas a mais agradável, assim também não procura o tempo mais longo de vida mas o mais agradável."
(Epicuro, Carta sobre a Felicidade)

segunda-feira, maio 24, 2010

Vendo a Morte

Em tudo vejo a morte! e, assim, ao ver
que a vida já vem morta cruelmente
logo ao surgir, começo a compreender
como a vida se vive inutilmente...

Debalde (como um náufrago que sente,
vendo a morte, mais fúria de viver)
estendo os olhos mais avidamente
e as mãos prà vida... e ponho-me a morrer.

A morte! sempre a morte! em tudo a vejo
tudo ma lembra! e invade-me o desejo
de viver toda a vida que perdi...

E não me assusta a morte! Só me assusta
ter tido tanta fé na vida injusta
... e não saber sequer pra que a vivi!

(Manuel Laranjeira)

sexta-feira, maio 21, 2010

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"Coimbra, 2 de Janeiro de 1987 - Um passo a mais neste caminho da lucidez impiedosa, e fico sem pé na vida." (Miguel Torga, Diário XIV)

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"Coimbra, 25 de Maio de 1982 - Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs." (Miguel Torga, Diário XIV)

terça-feira, maio 18, 2010

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"One makes oneself a visionary
by a long, immense, and reasoned
disordering of the senses."

(Rimbaud)

segunda-feira, maio 17, 2010

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"[...] uma infância só tem um sentido, só presta, se conseguimos sair dela, se teve resultado, isto é, se deu (e nós com ela, nós pós ela) para algum lado. Ora isto não é assim como se julga. Há os que avançam um bocadinho, mas depois param na adolescência - e são rapazolas toda a vida e chegam a velhos, quando chegam, e só fizeram rapaziadas. Outros ficam sempre sendo garotos mimalhos. Nada disto é coisa de louvar - no planos sociológico (no de cada um, tanto faz). Tudo se quer a seu tempo. O pior, o difícil, é haver só (e uma vez só) um tempo para cada coisa ou estado ou atitude. Um tempo certo para cada jogada, como no xadrez. Uma táctica subordinada a uma estratégia coerente, premeditadas ambas. Uma práxis ou etiqueta. Digamos: uma teoria e a prática teimosa logo e sempre dessa teoria. Um tempo, o lugar e a fórmula: um lar e pais e beijos e brinquedos para a infância; uma luz e amigos e namoradinhas para a adolescência; uma força e um gesto e o Amor para a idade adulta; um exemplo e uma dignidade e um silêncio para a velhice. Um tempo de liberdade para cada coisa e cada um. Ou: um tempo de coragem e desespero para lutar para conquistar essa liberdade necessária a essa cada coisa, a cada um. Talvez uma Pátria. Um amigo, ou dois, não seria demais. Inimigos, os que a nossa intransigência criasse. E filhos, muitos filhos - nossos juízes, nossa aposta no futuro." (O Teodolito, Luiz Pacheco)

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"Estes velhos palácios, quase abandonados, olho-os sempre, de longe, como um sonho de conforto, de intimidade e de bem-estar: de estabilidade na vida. Independência e sossego, possibilidade de fazer a vida como seja a nosso gosto! São os meus ideais impossíveis. Um velho solar de paredes que tenham vivido muito mais do que eu, dessas paredes que têm fantasmas, e em volta um grande parque de velhas árvores, com recantos onde nunca vai ninguém. Viver o tumulto das grandes cidades e depois o silêncio, a solidão desses paraísos abandonados há muitos anos, onde entramos com não sei que inquietação, como quem desembarca numa ilha desconhecida... Ah! isso, sim, é que me dava outras possibilidades de ser, de compreender e de ir pelo meu caminho. Mas não. Por que se luta, então, para conquistar um caminho que se sabe que não é o nosso? Somos nós próprios que traímos a nossa vida. A vida não é isto, não é ganhar dinheiro. Isto é a fase primária. As necessidades físicas pressupõem-se. Gastamos as forças a tentar alcançar o que nos devia ser dado sem pensarmos nisso e que o não é porque os homens se atraiçoaram uns aos outros como inimigos. A vida é outra coisa. Mas também sou uma espécie de místico sem coragem para renunciar. O espírito manda-me quebrar estas algemas que trago nos pulsos e ir para os montes, vaguear entre as coisas da Natureza, a vê-las com o deslumbramento de quem começasse a vida em cada dia. As flores, os bichos, o sol, a chuva, as fontes, as árvores, as aves, o azul do céu, as nuvens brancas que o vento leva lá ao longe, o mar, ah! tudo isso!... Mas falta-me não sei que força, não sei que convicção de conquista ou de renúncia, pois para conquistar uma coisa é preciso renunciar primeiro a muitas outras. Quantas pessoas, porém, tenho encontrado que são como eu, quase como eu: negadas a si próprias, paradas no encontro das forças contrárias, afinal sem a decisão de quem simplesmente caminha para algum sítio onde pensou chegar. (O Barão, Branquinho da Fonseca)

sexta-feira, maio 14, 2010

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"Quem fala da felicidade tem muitas vezes os olhos tristes."
(Louis Aragon)

quinta-feira, maio 06, 2010

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"The hopeless emptiness. Hell, plenty of people are on to the emptiness part; out where I used to work, on the Coast, that’s all we ever talked about. We’d sit around talking about emptiness all night. Nobody ever said 'hopeless', though; that’s where we’d chicken out. Because maybe it does take a certain amount of guts to see the emptiness, but it takes a whole hell of a lot more to see the hopelessness. And I guess when you do see the hopelessness, that’s when there’s nothing to do but take off. If you can." (Richard Yates, Revolutionary Road)

quarta-feira, maio 05, 2010

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"Que tenho eu a ver com todas as Revoluções do mundo, se sei permanecer eternamente doloroso e miserável no seio do meu próprio ossário?" (Antonin Artaud)

terça-feira, maio 04, 2010

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Neste espaço a si próprio condenado
Dum momento para o outro pode entrar
Um pássaro que levante o céu
E sustente o olhar
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Com a tristeza acender a alegria
Com a miséria atear a felicidade
E no céu inocente da visão
Fazer pulsar um pássaro por vir
Fazer voar um novo coração

(Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca)

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"Um homem desorganizado que vai morrer e não desconfia disso põe subitamente em ordem tudo à sua volta. A sua vida muda. Arquiva papéis. Levanta-se cedo e deita-se cedo. Renuncia aos vícios. Os seus familiares congratualam-se. Assim, a sua morte repentina parece ainda mais injusta. Ele teria sido feliz." (Raymond Radiguet, Com o Diabo no Corpo)