segunda-feira, abril 28, 2014

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Quando morre uma personalidade de renome, Narciso aproveita a ocasião para lhe prestar a devida homenagem. Mas, sendo Narciso quem é, facilmente se compreende que o morto pouco importa, ou que importa apenas na medida em que serve de tribuna a partir da qual Narciso pode falar de si próprio: de como tinha o privilégio de conhecer tão ilustre falecido, de como fazia parte dos eleitos de tão exclusivo círculo social, de como o tratava por tu, etc., etc.. Olhem para mim, pede Narciso, depois de subir para cima do morto. Olhem para mim, repete, enquanto procura nos olhares que o fitam o reflexo admirável que é incapaz de encontrar frente ao espelho...

quinta-feira, abril 24, 2014

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"Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas..."

(Raul Brandão, Memórias)

terça-feira, abril 22, 2014

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"Ah, mas quem sou eu para falar assim! Não passo dum egoísta transcendente. Este desgosto de mim próprio, da vida e dos homens, que é senão vaidade ferida, ambição desmedida, orgulho inconfesso?... Tenho um conceito exagerado da minha importância. Volto-me então contra os outros, torno-os responsáveis das minhas falhas: e que podem eles fazer? em que lei está escrito que eles ou eu devamos ser bons, justos, superiores? Reclamar a perfeição não será a melhor forma de desistir, de dizer «não posso»? Exijam a um homem comum que seja santo, génio, ou puro, e ele, assustado, será incapaz de nos dar simplesmente o de que é capaz. Pedimos a Lua..."

(José Rodrigues Miguéis, Idealista no Mundo Real)