terça-feira, agosto 31, 2010

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"I always thought death would come on the freeway in a few horrifying moments, so you'd have no time to sort it out. Having months and months to look at it, and think about it, and talk to people and hear what they have to say, it's a kind of blessing. It's certainly an opportunity to grow up and get a grip and sort it all out. Just being told by an unsmiling guy in a white coat that you're going to be dead in four months definitely turns on the lights... It makes life rich and poignant. When it first happened, and I got these diagnoses, I could see the light of eternity, a la William Blake, shining through every leaf. I mean, a bug walking across the ground moved me to tears."

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‎"[...] When I think about dying, the thing that surprises me is how much of the future I regard as history, and how I don't want to miss it. I want to know how it all comes out. I haven't a lot of money riding on my vision of things, but I would like to know how the universe came to be, what's up with extraterrestrials, where biotech is going, where the Internet is going, about robot/man space-flight to the outer planets. Because the next century will be it. We are on the brink of a posthuman existence, or we are into the early phase of the posthuman existence. So what's it gonna look like? What's it gonna feel like? Hipparchus, in the second century B.C., was asked what he feared most about death, and he said, 'not being able to follow the latest discoveries in astronomy'. Well, that's precisely my position."


(Terence McKenna)

sexta-feira, agosto 27, 2010

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"Não há nada mais sedutor para o homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada mais torturante. [...] Existem três forças, as únicas forças na Terra capazes de conquistar e cativar para sempre as consciências destes rebeldes fracos, para felicidade deles. Estas forças são: o milagre, o mistério e a autoridade. Rejeitaste o primeiro, o segundo e a terceira [...] E poderias realmente supor, por um instante que fosse, que as pessoas também teriam forças para resistir a semelhante tentação? Terá a natureza humana sido assim criada, será ela capaz de rejeitar o milagre e, nos momentos terríveis da vida, nos mais terríveis momentos, nas questões da alma essenciais e torturantes, será a natureza humana capaz de seguir apenas a livre escolha do coração?" (Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov)

quarta-feira, agosto 25, 2010

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"Se os sofrimentos das crianças foram acrescentados para perfazer a soma de sofrimentos necessária à compra da verdade, então afirmo desde já que toda a verdade não vale esse preço. Ao fim e ao cabo, o que eu quero é que a mãe não abrace o carrasco cujos cães despedaçaram o filho dela! Que ela não se atreva a perdoar-lhe! Se ela quiser, que perdoe por si, que lhe perdoe o seu incomensurável sofrimento materno; mas não tem o direito de perdoar o sofrimento do seu filho despedaçado, que não se atreva a perdoar ao carrasco, nem que a própria criança lhe perdoasse! Mas, se assim for, se não há o direito de perdoar, onde está então a harmonia? Haverá em todo o mundo uma criatura que possa e tenha o direito de perdoar? Eu não quero a harmonia, por amor à humanidade, não a quero. Quero antes ficar do lado dos sofrimentos não vingados. É melhor que eu fique com o meu sofrimento não vingado e com a minha indignação não saciada, mesmo que não tenha razão. Também estabeleceram um preço demasiado alto para a harmonia, está para além das nossas posses pagar tanto pela entrada. Por isso, apresso-me a devolver o meu bilhete de entrada. E, se for um homem honesto, tenho a obrigação de o devolver com a máxima antecedência. É o que estou a fazer. Não quero dizer que não admita Deus, não, Aliocha, apenas lhe devolvo, com todo o respeito, o bilhete.
- Isso é uma revolta - disse Aliocha, cabisbaixo, numa voz muito ténue.
- Revolta? Eu não queria ouvir-te dizer esta palavra - disse Ivan com um sentimento profundo. - É impoosível viver-se revoltado, e eu quero viver. Diz-me tu próprio e frontalmente, responde-me: imagina tu que estás a construir o edifício do destino humano, com o objectivo de, no fim, fazeres com que as pessoas sejam felizes, que recebam a paz e o sossego, mas que para isso seria necessário e inevitável martirizar apenas uma criança minúscula, aquela criancinha que batia com a mãozinha no peito, e que seria sobre as lágrimas não vingadas dela que tinhas de erguer o edifício; concordarias então, nessas condições, em seres o arquitecto? Diz, e não mintas!" (Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov)

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"De acordo com a minha terrena e miserável mente euclidiana, sei apenas que o sofrimento existe, que não existem culpados, que as coisas decorrem umas das outras directa e simplesmente, que tudo corre e se equilibra... mas trata-se apenas de um absurdo euclidiano, sei bem que é assim e não poderia concordar em viver de acordo com ele! Quero lá saber que não haja culpados e que eu tenha consciência disso, preciso de expiação, senão mato-me. E esta expiação não deve acontecer num infinito qualquer e sem se saber quando, mas aqui e agora, na Terra, para que eu a veja com os meus olhos. Eu tinha fé, e agora quero ver eu próprio e se, na altura de ver, já estiver morto, que me ressuscitem porque, se tudo acontecer sem mim será demasiado injusto. Será que sofri tanto para adubar comigo mesmo, com a minha perversidade e o meu sofrimento, uma futura harmonia para os outros? Quero ver com os meus próprios olhos o gamo a deitar-se ao lado do leão e o degolado a levantar-se e a abraçar o seu assassino. Quero cá estar quando todos, de repente, souberem porque foi tudo assim."
(Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov)

terça-feira, agosto 17, 2010

Mais da "Carta ao futuro"...

"Os limites da nossa condição... Como é espantosa a sua descoberta! Ela é paralela da morte daquilo que descobrimos: só depois da falência das nossas invenções nos descobrimos a nós, os inventores. Jamais o homem terá atingido os seus limites, porque jamais terá deixado de ser tudo aquilo em que existia. O fascinante milagre que é o sabermo-nos vivos, o conhecermos esta incrível iluminação de nós a nós próprios, de nós ao universo, só agora nos perturba, só agora é alucinante, porque só agora é gratuita. Vivemos em nós; a dimensão da infinitude que nos habita, este poder incrível de saber-nos, de sermos uma pessoa, é em nós que se limita e torna espessamente absurdo o desafio que nos lança a contingência e a morte. A experiência de nós próprios, do inverosímil milagre do que somos, é extraordinariamente difícil, meu amigo, e de si mesmo miraculosa. Habita-nos um poder brutal de uma evidência fechada, de uma irredutível necessidade que nos vem deste sentirmo-nos um indivíduo, uma inteireza sem traço de união, um absoluto de presença que recusa a contingência, a ligação com tudo o que nos rodeia, a dependência da fatalidade. E todavia sabemos que a fatalidade existe. Como é possível? Como é possível? Vejo-me, sinto-me, reconheço-me um mundo fechado, indissolúvel, olho as minhas mãos, sei-me, penso-me, reconheço-me uma multidão de ideias, de sensações que me foram habitando, sinto-me eu, um todo, indivisível e irredutível, um ser instalado numa inefável eternidade necessária, um ser com um quê de único, aquele que sou para mim próprio, aquele que sou para os outros como os outros o são para mim no seu tom de voz, no seu modo de gesticularem, na pessoa tão única, tão nítida, tão fascinante que me causa terror. Ah, a terrível dificuldade de apanhar na palavra esta evidência tão flagrante, esta realidade tão vivaz e tão fluida - esta realidade que dura e nos persegue e está ao pé de nós depois de alguém nos morrer... Lembro-me de contar algures a aparição desta certeza na vulgar experiência de nos vermos a um espelho: diante de nós está uma pessoa que nos fita, que é um ser vivo, totalizado, que vê, que pensa, que nos olha, nos olha, nos causa pânico, nos gela de pavor até a uma obscuridade de raízes. Como é ridículo este esforço para captar na palavra este instante infinitesimal em que estou apanhando, num clarão, a fulgurante verdade do que sou! E todavia, só em face dessa alucinante evidência é possível divisar os limites desde onde poderemos sonhar a construção do nosso reino sobre a terra. E é porque é difícil ver, ter a aparição de nós a nós próprios, que os homens se podem construir uma redenção com uma aparência de segurança que os ilude e os escarnece. Para o homem vulgar (para cada um de nós também, quase sempre) a vida resolve-se numa presença em, num ser o mundo que existe como por si mesmo, sem pensar-se que é através de nós, sem um regresso à vertigem de estarmos sendo nós, daquilo que somos. E porque a vida é assim, se resolve assim nessa contrafacção de eternidade, nessa fácil imitação de uma presença divina, nesse inconsciente e ilusório modo de ser-se quotidianamente um deus - por isso, a morte não tem ainda senão um significado de vida: uma presença de nós para lá dela, essa presença que nos inventamos agora, enquanto vivos, como memória, nela, da vida, como é em nós memória, agora, tudo aquilo que já perdemos - a infância, a juventude. Mas a morte é algo de mais incrivelmente absurdo, porque é o nada inimaginável, a impensável destruição do absoluto que conhecemos na irredutível e necessária pessoa que somos. Pobres palavras vãs: um 'nada' imaginamo-lo sempre como algo que é... Mas o nada é a desaparição de nós a nós próprios, a anulação desta evidência que é a pessoa que está em nós, o puro vazio deste quid único, desta realidade que há em nós e nos assusta, porque é terrivelmente viva e verdadeira. [...]

O que há redimir é a adequação deste milagre brutal de nos sabermos uma evidência iluminada, de nos sentirmos este ser que é vivo, se reconhece único no corpo que é ele, na lúcida realidade que o preenche, o identifica nas mãos que prendem, na boca que mastiga, nos pés que firmam, de nos descobrirmos como uma entidade plena, indispensável, porque ela é de si mesma um mundo único, porque tudo existe através dela e é impossível que esse tudo deixe de existir, porque ela irrompe de nós como a pura manifestação de ser, e o 'ser' é a única realidade pensável - o que há a redimir é a adequação desta fantástica evidência que nos cega e a certeza de que ela está prometida à morte, de que o seu destino é impossível e absoluta certeza do não-ser, da pura ausência, da totalidade nula, da pura irrealidade. Colaborar com a vida, aceitar a validade de uma norma, forjar uma regra para a distribuição da nossa acção e interesse - sim. Mas é impossível, antes disso, desviarmos os nossos olhos da fascinação da vertigem, e vermos, vermos bem, de que fundas raíses gostaríamos de entender tudo quanto realizássemos. É uma tentativa absurda, meu amigo, toda a gente no-lo diz - toda a gente que desconhece essa força que nos fascina. Mas eu sei que só se é homem, plenamente, quando se sabe."A escala de tudo quanto povoa a terra estabelece-se-nos aí, no saber. A ilusão de plenitude, a ficção de uma quotidiana divindade, essa que se define por uma certa instalação na permanência, forja-se apenas de uma inconsciência animal. Somos homens, não somos deuses nem pedras. Se a grandeza que nos coube foi essa ao menos de saber, conquistemo-la até onde, nos limites das evidências primeiras, ela se nos anuncia. E se o 'absurdo' é a face desses limites, assumamo-la como quem não rejeita nada do que é ainda nós próprios. A cobardia não está em assumir esses limites, mas em recusá-los, como o não está em reconhecer uma doença, mas em não fitá-la de frente. Só se é justo, corajoso, pela assunção consciente do que nos ameaça e por isso o bruto não é heróico. O 'para quê' que nos antepõem todos os homens sensatos implica um programa utilitário de todo o instinto prático e animal. Mas nós, contra tudo o que povoa a terra, temos o fulminante poder de sabermos quem somos. É aí que cabe a nossa condição, é aí que cabe a nossa interrogação, fascinante e sem limite." (Vergílio Ferreira, Carta ao futuro)

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"Eis que, porém, depois de todas as negações, depois da falência de todas as formas de uma pacificação, o homem descobre enfim que está só. Todos os brinquedos da nossa infância milenária jazem por terra com as tripas mecânicas de fora, e depois do prazer com que os desventrámos, olhamos, aterrados, por não termos mais brinquedos para desventrar... As horas do nosso abandono ressoam no céu deserto onde só o silêncio responde ao nosso pobre pavor. É pois certo que nada mais há do que esta infinitude limitada, do que este céu recurvo onde um anseio, que projectemos, a si regressa num círculo, como um raio de luz. É pois certo que o nosso reino se descobriu enfim nos limites de um náufrago de mãos vazias e um tugúrio por construir desde o nada. Na terra desabitada, no universo desabitado, o último sol de ocaso prolonga a nossa sombra de estátuas finais que meditam. Um ciclo novo de vida se inicia agora desde o nada absoluto, onde, do mundo antigo, permanece apenas o rasto do espanto, do alarme que não finda. Porque se há uma continuidade na conquista, se os muros que sonhamos erguer para a nossa nova morada não são feitos com as pedras enegrecidas pela pobre candeia que outrora nos iluminou, se às ilusões seculares as reconhecermos como tais e esperamos que, a virem outras, elas sejam as sombras de um sol novo – é absolutamente certo que a surpresa da morte dos deuses não é o aviso da sua ressurreição, como a dor de um pai que nos morreu não é o sinal do seu regresso... Assim, que ninguém se espante do nosso espanto, nem que ninguém sonhe escravizar a nossa melancolia no seu rebanho de escravos: sobre o campo dos mortos, as searas não dão pão para os mortos, mas para os vivos. Sabemos que o céu estava vazio ao terminarmos a sua escalada. Sabemo-lo porque vimos não da luz que vem das coisas, mas da força iluminadora que irrompe de nós próprios e define a nossa presença. Que ninguém nos demonstre o nosso erro nem a nossa verdade: mais forte que toda a demonstração é a evidência feita carne e ossos e sangue e nervos, é esta plenitude sem margem de sermos. A luz que iluminou a presença dos outros, dos que nos precederam, eles a consumiram para si próprios, nesse seu modo de saberem que estavam vivos. A luz que ilumina o estarmos sendo é intransmissível como o sentirmo-nos a viver. Que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro: não se demonstra o ser pedra uma pedra, o ser estrela uma estrela. Mas precisamente por isso, que ninguém nos demonstre que é incoerente e sobretudo insincero, reconhecer a evidência da morte dos deuses e estremecer na angústia de um mundo despovoado, de um universo reduzido à incrível escala humana. Como se a irredutível verdade da morte de alguém, que conhecemos, exigisse a coerência de uns olhos enxutos: mais forte que a certeza da inutilidade da dor é a absoluta presença da dor. Na ilha deserta, a aflição do abandono não reconduz o mundo que se perdeu: é o irremediável sinal de um recomeço, é o anúncio da vida de todo o homem para recriar o mundo. (Vergílio Ferreira, Carta ao futuro)

sexta-feira, agosto 13, 2010

"Adeus eterno!"

"[...] Escutei estas palavras repetidas: 'Adeus eterno!' E ainda várias vezes: "Adeus eterno!"
E então eu despertava na minha agitação, gritando: "Não quero mais dormir!"
Hoje cheguei a temer a aproximação do sonho, se me deve trazer visões tão dolorosas, cheias de uma vida tão intensa, como as que me perseguiam o cérebro cheio de fantasmas. [...]
Considerando que minha vida era mais necessária a outros do que a mim, cheguei a inquietar-me realmente, e detive-me a tempo, mas com um esforço que está a acima de qualquer descrição. Fizesse o que fizesse, parecia como se diz em termos militares, "a morte me saía à frente." Renunciar ao ópio não era de modo algum libertar-me das angústias que eram "mortais" na correcta acepção do termo; mas, por outro lado, morrer em consequência de espantos nervosos, morrer de febre cerebral ou de loucura, eis as alternativas que se me antojavam. Felizmente, ainda me restava bastante firmeza de carácter para escolher deliberadamente o partido que me imporia mais sofrimentos, mas que me mostrava ao longe a esperança de me salvar definitivamente.
Esta possibilidade realizou-se; pude escapar ao ópio. O desfecho desta nova crise nas minhas experiências achas-se descrito com bastante exactidão nas linhas seguintes, que meus amigos leitores encontraram na primeira edição destas Confissões. Se estas linhas ali se encontram, é que a crise de que falam não foi mais que um esforço provisório que aplainou o caminho para outras crises mais suportáveis, a que meu sistema constitucional se submeteu gradualmente. [...]
Lord Bacon supõe que é tão doloroso nascer como morrer. Parece provável: durante todo o tempo que consagrei ao diminuir da minha ração de ópio, sofri os tormentos de um homem que passa de um modo de existência a outro e que sente, ao mesmo tempo, ou alternadamente, as dores do nascimento e da morte. O final não foi a morte, e sim uma espécie de regeneração física; assim posso acrescentar que sempre, depois e de vez em quando, fui experimentando uma ressurreição juvenil das minhas faculdades.
Resta-me, todavia, uma herança o meu antigo estado: os meus sonos não são tranquilos. A mortal agitação e o transtorno da tempestade não se apaziguaram de todo; as legiões que acampavam no meu sonho puseram-se em marcha, mas não desapareceram inteiramente. O meu repouso é ainda incompleto, agitado; está como as portas do Paraíso, tal como as viram ao voltar-se os nossos primeiros pais; ainda está como no espantoso verso de Milton:

'Cheio de terríveis rostos e braços ameaçadores'
."

(Thomas de Quincey, Confissões de um Comedor de Ópio")

[Este excerto é retirado de uma edição brasileira de Confessions of an English Opium-Eater. Recomendo, no entanto, a leitura do texto na sua língua original...]

quinta-feira, agosto 05, 2010

"Tu és a terra..."

Tu és a terra em que pouso.
Macia, suave, terna, e dura o quanto baste
a que teus braços como tuas pernas
tenham de amor a força que me abraça.

És também pedra qual a terra às vezes
contra que nas arestas me lacero e firo,
mas de musgo coberta refrescando
as próprias chagas de existir contigo.

E sombra de árvores, e flores e frutos,
rendidos a meu gosto e meu sabor.
E uma água cristalina e murmurante
que me segreda só de amor no mundo.

És a terra em que pouso. Não paisagem,
não Madre Terra nem raptada ninfa
de bosques e montanhas. Terra humana
em que me pouso inteiro e para sempre.

(Jorge de Sena, Sobre esta praia...)

quarta-feira, agosto 04, 2010

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Juegas todos los días con la luz del universo. Sutil visitadora, llegas en la flor y en el agua. Eres más que esta blanca cabecita que aprieto como un racimo entre mis manos cada día. A nadie te pareces desde que yo te amo. Déjame tenderte entre guirnaldas amarillas. Quién escribe tu nombre con letras de humo entre las estrellas del sur? Ah déjame recordarte cómo eras entonces, cuando aún no existías. De pronto el viento aúlla y golpea mi ventana cerrada. El cielo es una red cuajada de peces sombríos. Aquí vienen a dar todos los vientos, todos. Se desviste la lluvia. Pasan huyendo los pájaros. El viento. El viento. Yo sólo puedo luchar contra la fuerza de los hombres. El temporal arremolina hojas oscuras y suelta todas las barcas que anoche amarraron al cielo. Tú estás aquí. Ah tú no huyes. Tú me responderás hasta el último grito. Ovíllate a mi lado como si tuvieras miedo. Sin embargo alguna vez corrió una sombra extraña por tus ojos. Ahora, ahora también, pequeña, me traes madreselvas, y tienes hasta los senos perfumados. Mientras el viento triste galopa matando mariposas yo te amo, y mi alegría muerde tu boca de ciruela. Cuanto te habrá dolido acostumbrarte a mí, a mi alma sola y salvaje, a mi nombre que todos ahuyentan. Hemos visto arder tantas veces el lucero besándonos los ojos y sobre nuestras cabezas destorcerse los crepúsculos en abanicos girantes. Mis palabras llovieron sobre ti acariciándote. Amé desde hace tiempo tu cuerpo de nácar soleado. Hasta te creo dueña del universo. Te traeré de las montañas flores alegres, copihues, avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos. Quiero hacer contigo lo que la primavera hace con los cerezos. (Pablo Neruda)
 

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade, O Corpo)

terça-feira, agosto 03, 2010

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"Eu ainda não me rendi a quantas ameaças e ataques tenho encontrado na vida. Eu não aceito a vida; eu não fujo medroso diante da vida. E a prova está nos esforços com que tento desprender-me. É que eu sinto ainda a mesma coragem, a mesma força, a mesma fé de outrora. Simplesmente sinto-as mais serenas, mais disciplinadas, mais reflectidas. Poder-se-ia acusar uma semente de não germinar, só porque a semearam sobre uma rocha estéril? Creio que não. Não, amigo, eu não falhei ainda. Eu não caí ainda." (Manuel Laranjeira, Cartas)

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"Eu creio que não faço senão morrer a vida, tanto esta minha existência se parece com viver a morte.
Não é porque eu não sinta dentro do meu ser explodir, como um ansioso fluxo da vida, um desejo de viver também integralmente a minha vida. Mas é um fluxo momentâneo apenas. Logo os braços me caiem na inércia de quem morre e o meu olhar perde-se nas planuras longínquas dum brumoso país de tédio, de desânimo, de dúvida.
Sinto-me semelhante a uma árvore agonizante, seca, despida no meio de uma floresta viva. Tão hirto, tão seco, tão sem ilusões, me sinto no meio de tudo isto a esbracejar de saúde, de alegria de viver." (Manuel Laranjeira, Cartas)

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"Sinto a desolação horrível, trágica de quem já não pode iludir-se com nada e encontra em quanto existe a infinita miséria. E sinto a verdade daquelas palavras que às vezes digo como uma síntese do meu estado de espírito: sofro da horrível desgraça do Homem que olha para a vida e sente que já não pode ser enganado..." (Manuel Laranjeira, Diário Íntimo)

"A vida hoje foi para mim, como em tantos outros dias, igual, parda, ordinária... Nestas horas assim gris, sinto a sensação penosa de que a vida se me está gastando, esgotando, imbecilmente... sem eu viver. E sinto esta ideia de pesar que hei-de morrer sem ter sabido viver a vida... Afinal o mal da nossa vida é não saber vivê-la... ou não poder." (ibid)

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"Afinal, amigo, eu também nasci místico; e, quando se nasce místico, o remédio é satisfazer a sede de ideal. Nos místicos da vida o ideal chama-se virtude; nos místicos da arte chama-se beleza. Virtude e beleza, na essência, são a mesma coisa. A virtude é a ânsia de compor a vida como uma obra de arte; a beleza a ânsia de compor uma obra de arte como a vida." (Manuel Laranjeira, Cartas)

segunda-feira, agosto 02, 2010

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"Tem razão: a paz - sobretudo a paz interior - é uma mentira para nós... e creio até que para todos os homens. De resto, se os homens soubessem que, quando a paz entra no espírito, a morte não está longe, talvez a não desejassem tanto. A vida é dolorosa e a verdade é amarga. Mas que importa? Façamos como os místicos, que, de tanto abraçarem o sofrimento, chegaram ao culto da dor. Eu por mim já me habituei de tal modo ao sabor venenoso da verdade, que ela para mim hoje constitui um tóxico indispensável. Quanto à paz... eu até me envergonhava de ser mais cobarde do que aquele meu lendário antepassado que a perdeu e perdeu o paraíso a troco daquele fruto venenoso e bom."
(Manuel Laranjeira, Cartas)