terça-feira, abril 16, 2013

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"O berço baloiça por cima de um abismo e o senso comum diz‑nos que a nossa vida mais não é do que uma brecha de luz entre duas eternidades de treva. Apesar de gémeas idênticas, vulgar será que o homem olhe com maior calma o abismo pré‑natal do que o outro para o qual se dirige (a qualquer coisa como quatro mil e quinhentas batidas de coração por hora). Sei no entanto de um jovem cronófobo que entrou numa espécie de pânico quando viu pela primeira vez cenas filmadas em sua casa, semanas antes de ter nascido. Viu um mundo praticamente igual — a mesma casa, as mesmas pessoas — mas reparou que ele próprio ainda lá não estava nem havia quem lamentasse a sua ausência. De relance viu a mãe dizer adeus na janela do andar de cima, e esse estranho gesto perturbou‑o como se fora uma misteriosa despedida. Porém, o que mais o assustou foi a imagem de um carro de bebé com o ar pretensioso, com o ar abusivo de um esquife, novinho em folha e parado no vestíbulo; também ele vazio, como se os seus próprios ossos, nessa corrida inversa de factos, se tivessem desintegrado."

(Vladimir Nabokov, Fala, Memória)

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