segunda-feira, outubro 31, 2011

Estertores...

Para quem não teve a oportunidade de ler, aqui fica a ligação a Pescadores de águas turvas, mais uma pérola de José António Saraiva, autor das famosas crónicas Fazer a mesma vida gastando metade e No poupar é que está o ganho. Lá que o senhor é poupado no acto de pensar, isso é inegável. Pois leia-se mais este delírio e pasme-se com aquilo que escreve, e também com aquilo que ensina: "Há muito tempo que defendo, nas minhas aulas de Política, que todos estes movimentos de massas têm um fundo antidemocrático." Aqui deixo a minha resposta possível, publicada no site do 'Sol' a 27 de Outubro...

---

Caro José António Saraiva,

Tenho, desde já, três hipóteses: ou assumo que o senhor está a ser intelectualmente desonesto, que age de má fé, alimentado pelo medo do porvir, procurando defender o "estado de coisas" que tão bem o trata, e respondo-lhe à letra; ou assumo que este texto é fruto da sua inconsciência, gerada por um profundo afastamento da realidade que o rodeia, e, com alguma condescendência, dou-me ao trabalho de lhe explicar o que se passa no mundo e no país real, a si, que dirige um órgão de comunicação social; ou assumo, por fim, que a dimensão dos delírios que ultimamente tem produzido se fundam numa retirada involuntária da realidade, associada a desequilíbrios do foro psicológico, e, nesse caso, por mero pudor e respeito, opto pelo silêncio. Enfim, apesar de tudo, acredito que se situa algures entre a primeira e a segunda hipóteses (mas com alguns traços da terceira - quem consegue ser são num mundo como este?), pelo que procurarei ser o mais construtivo possível na minha resposta...

Antes de mais, começa por afirmar ser incapaz de compreender que gente é esta que se indigna, com quê, e porquê... Apesar de crer que conhece minimamente (também pela profissão que desempenha) o contexto social nacional e mundial actual, acredito serem genuínas essas questões que se coloca: acredito que não saiba, de facto, "quem é esta gente", nem porque se indigna. Não digo isto apenas pela bolha em que sei viver a sua vida (facilmente aferida pelas crónicas humorísticas sobre a poupança com que, tão gentilmente, nos presenteou nos últimos tempos), mas sobretudo pelo exercício oco dos dois parágrafos seguintes, em que subitamente já percebe muito bem que "haja pessoas indignadas." É quase confrangedor sentir a forma como escreve sobre uma realidade que é incapaz de tocar, numa quase absurda assunção de um lugar que não conhece, mas que sabe ou imagina existir: não há sentimento nas suas palavras, não há nervo, há apenas um vazio estéril; você não sabe o que é não ver "nenhuma saída"; e, se alguma vez soube, é óbvio que já se esqueceu...

Depois da tese superficial em que reduz o fundamento da indignação ao desemprego, diz o senhor que a aflição motivada pela potencial, ou real, perda da autonomia (colocando em causa a sobrevivência, ou a possibilidade de uma vida digna) conduz ao sentimento de revolta... Caro senhor, permita-me que lhe diga o seguinte, de uma forma muito simples: uma das características dos "indignados" que por esse mundo fora se manifestam é precisamente o partilharem a consciência de que essa asfixia de oportunidades não é, como se procura fazer crer, uma fatalidade; "não é a crise, é o sistema" tem sido proferido globalmente (por aqueles que conseguem ter voz - muitos há que estão silenciados), e o sentimento de revolta não nasce apenas da frustração ou do desespero daqueles que se encontram no terrível limite da sua condição; nasce, sobretudo, da percepção lúcida que é hoje possível ter-se de que a dignidade humana é verdadeiramente posta em causa pelo modelo de sociedade em que vivemos, pelos poderes sociopatas que se erguem neste paradigma do capitalismo selvagem e que, como se tem verificado nas últimas décadas, e de uma forma cada vez mais grave e acentuada, perpetuam e aprofundam as desigualdades e as injustiças sociais, hipotecando milhares de milhões de vidas presentes e futuras. Escreveu Camus: "A revolta nasce do espectáculo da insensatez, perante uma condição injusta. [...] Que vem a ser um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim." Suponho que compreenda o que isto significa...

Não tenho de lhe explicar que a história da Humanidade é também a história da luta contra as formas de opressão; nem que lhe dizer que nenhum sistema, depois de implementado, por muito que seja melhor do que anterior, está livre de ser preterido ou transformado, com mais ou menos dores de crescimento, sofrendo de forma mais ou menos traumática. Sim, urge a mudança, e urge a mudança profunda, porque uma coisa é certa: como alguém gritava no dia 15 de Outubro, em Lisboa, se continuarmos por este caminho, vai chegar rapidamente o dia em que "a única coisa que os pobres terão para comer serão os ricos". E suponho que nem pobres nem ricos anseiem por esse dia...

Não deixa de ser engraçada a forma como, agindo o medo do desconhecido, ou de perder aquilo que se tem investido, se tenta descredibilizar um movimento de protesto, alegando não apresentar uma alternativa ao modelo vigente. Já tinha apreciado esse gesto desesperado, quando o mesmo procurava infantilizar, mas foi a primeira vez que o vi ser feito no sentido de ligar o movimento ao terrorismo. E porque razão são os indignados terroristas? Porque rejeitam este modelo de sociedade mas não propõem outro, diz o senhor. Brilhante! Um verdadeiro "salto", sem qualquer lógica ou sustentação. Duas coisas... Em primeiro lugar, para se afirmar que algo não funciona, não tem necessariamente de se saber dizer como deveria funcionar - se eu estivesse em condições de gerir o País, apresentava um projecto para ser Governo, mas como não estou, procuro conhecer os projectos daqueles que se apresentam a eleições, daqueles que se afirmam estar em condições de resolver os problemas com que nos defrontamos. Significa isto que me demito de criticar e protestar contra aquilo que julgo ser errado? Significa isso que renuncio ao meu direito de participar? Claro que não. Não sou adepto do "come e cala." Procurando usar um exemplo prosaico, como o senhor procura fazer nas suas crónicas: qualquer trabalhador sabe dizer se o chefe é ou não competente, e se as suas qualidade de liderança são uma mais valia para a empresa; mas para poder aferir isso não tem que saber ocupar o lugar do chefe, compreende? Em segundo lugar, apesar da natureza relativamente inorgânica destes movimentos, que por todo o mundo começam a surgir, é falso que não tenham propostas alternativas. Mas, mais importante do que isso: é sobretudo falso que procurem destruir (apesar de compreender que seja esse o seu medo), e que não sejam motivados pelo desejo de participar na construção dessas mesmas alternativas. E é isso que também reivindicam: o direito de participar. Mas não se preocupe, porque é isso vai acontecer, mais tarde ou mais cedo. E talvez ainda tenha a sorte de o viver...

"Tudo isto é uma lufada de ar fresco. As críticas segundo as quais o movimento não tem um objectivo concreto ou é ideologicamente vago não me dizem grande coisa. Nesta país, a cultura da dissidência é hoje tão insípida que penso que é óptimo as pessoas voltarem a practicá-la, ou a participar nela pela primeira vez, juntando-se em carne e osso num espaço de protesto. Além disso, as reivindicações podem não ser muito precisas, mas as razões gerais do protesto são perfeitamente claras e válidas por si mesmas." (Siddhartha Mitter, Alternatives Internationales)

"Não é a crise, é o sistema", grita-se. Mas o sistema é feito de pessoas, alguém responde. Sim, é, mas de pessoas paridas pelo própria sistema, que de uma forma viciosa se vai alimentando de si mesmo. As pessoas dão corpo a este sistema, fazem dele o que são, mas é também no seio do sistema, daquilo que ele é, que as pessoas nascem e ganham vida. O sistema só muda quando as pessoas mudam. E, quando o sistema muda, as pessoas mudam também... Quando se nasce, nasce-se no seio de uma família, de uma cultura, de uma sociedade, que nos acolhe, ou não. Há muitos mundos, diferentes, neste nosso mundo, uns mais ricos de afectos, de valores, outro mais miseráveis. E esses mundos particulares dão à luz pessoas com mundos internos muito diferentes... Conscientes desta dinâmica de causalidades mutáveis, devemos trabalhar no sentido de ir criando mecanismos que defendam as pessoas das muitas incapacidades daquilo que é ser-se humano hoje, geradas por este mundo desigual e muitas vezes atroz. Na minha opinião, apenas um ser incapaz de sentir empatia pelo outro, e desesperadamente vazio, está disposto a pisar e a escravizar, e apenas para se encher daquilo que é acessório, e que apenas permite mascarar o que, por sua infelicidade, esteve sempre ausente no mundo que o viu nascer. Tenho a convicção de que as pessoas que oprimem, mais ou menos despoticamente, com recurso às mais variadas armas para o conseguir, não são mais do que, também elas, um miserável produto da vida nascida e crescida neste mundo tristemente minado por lugares despovoados de amor e de afectos, sem valores e sem limites. E esses lugares engravidam, perpetuam-se, e ameaçam a sobrevivência e a dignidade da espécie humana...

Como explicou recentemente Luís Queirós no Jornal de Negócios, creio que, "para sobreviver, a nossa civilização tem de encontrar formas de prosperar sem crescimento: uma prosperidade não centrada em conteúdos predominantemente materiais, em que se valorize mais o 'ser' do que 'ter', num mundo com novos valores e uma nova espiritualidade." Não sei se a transição será suave, não sei sequer se será possível, mas não tenha medo, nem fique angustiado: lembre-se de que não controla absolutamente nada, e de que aquilo que tiver de acontecer, acontecerá... Porque, "na realidade, não estamos a sofrer uma crise, mas um feixe de crises, uma soma de crises tão intimamente misturadas umas com as outras que não conseguimos distinguir entre causas e efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas de outras, até se formar um verdadeiro sistema. Ou seja, estamos a enfrentar uma crise sistémica do mundo ocidental que afecta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a guerra, a geopolítica, o clima, o ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação, a juventude, etc.", escreveu Igancio Romanet na última edição do Le Monde Diplomatique.

"Human history can be viewed as a slowly dawning awareness that we are members of a larger group. Initially our loyalties were to ourselves and our immediate family, next, to bands of wandering hunter-gatherers, then to tribes, small settlements, city-states, nations. We have broadened the circle of those we love. We have now organized what are modestly described as super-powers, which include groups of people from divergent ethnic and cultural backgrounds working in some sense together — surely a humanizing and character building experience. If we are to survive, our loyalties must be broadened further, to include the whole human community, the entire planet Earth. Many of those who run the nations will find this idea unpleasant. They will fear the loss of power. We will hear much about treason and disloyalty. Rich nation-states will have to share their wealth with poor ones. But the choice, as H. G. Wells once said in a different context, is clearly the universe or nothing." (Carl Sagan)

Mas regressando ao seu texto, não posso não lhe deixar uma nota sobre aquilo que ensina nas suas aulas de política... Diz-me então que "os movimentos de massas têm um fundo antidemocrático", certo? Que "o seu objectivo é tentar impedir pela força o Governo legitimamente eleito de aplicar as medidas que considera necessárias.". Caro senhor, esquece-se de um pequeno pormenor, e refiro-me agora à escala local: Pedro Passos Coelho "tem toda a legitimidade para impor as suas escolhas aos portugueses porque os portugueses o elegeram. Só que os portugueses elegeram-no com base em pressupostos e garantias falsos, que ele repetiu à exaustão antes e durante a campanha eleitoral", escreveu recentemente no Jornal de Negócios o nosso Prémio Camões, Manuel António Pina. Compreende? Não consigo imaginar maior vigor democrático do aquele em que um povo consciente (da complexa conjuntura nacional e mundial) afirma o seu descontentamento, de forma pacífica, nas ruas, sem esperar pelo dia do voto. "O caminho dos 'indignados' não é definitivamente o trilho certo para construir um país melhor", conclui. Está a falar de um país melhor para quem, pergunto-lhe eu? Para si? E cuidado com esse "definitivamente". Lembre-se das palavras de Eric Hoffer: "Só podemos ter certeza absoluta das coisas que não compreendemos." E eu compreendo que seja difícil para si, e para qualquer pessoa, entender a dimensão e o significado de um movimento inédito de protesto, que se ensaia, de forma consonante, à escala mundial...

É curiosa a forma como o senhor, um suposto liberal, lutando contra a expressão da indignação, que afirma ser "terrorista" e antidemocrática, ou seja, que afirma constituir uma ameaça à liberdade, introduz claramente a ideia de que seria desejável limitar a liberdade da contestar nas ruas. "Há muito tempo que defendo, nas minhas aulas de Política, que todos estes movimentos de massas têm um fundo antidemocrático", escreve. De alguma forma, alinha com alguns dos regimes que condena na sua crónica, repudiando as manifestações populares de descontentamento. Também as deseja proibir? Se os "terroristas" estão dispostos a destruir este mundo, que acha que faz o senhor, com essas suas palavras, ao seu mundo alegadamente democrático? Como diria Žižek, faz lembrar Jonathan Alter e Alan Dershowitz: mostravam tanto respeito pela dignidade humana que, para a defender, estavam dispostos a legalizar a tortura - ou seja, a suprema degradação da dignidade humana. Irónico, no mínimo...

E volto a trazer-lhe Carl Sagn, se me permite: "widespread intellectual and moral docility may be convenient for leaders in the short term, but it is suicidal for nations in the long term. One of the criteria for national leadership should therefore be a talent for understanding, encouraging, and making constructive use of vigorous criticism."

Por último, como indignado que estou e sou, devo dizer-lhe que não tenho intenção alguma de me tornar poder. Quanto a mim, pode ficar descansado. Como escreveu Bianciardi, "a revolução, se quiser resistir, deve permanecer revolução. Se se transforma em governo, já está falida... Os lugares que deixaram de ter uma revolução permanente recuperaram a tirania." Conte comigo para essa luta, enquanto o medo do porvir não me vergar, como diria que aconteceu consigo. Mas é normal, lembre-se de Pitigrilli, que é do seu tempo: "nasce-se incendiário e acaba-se bombeiro."

Cumprimentos,

Filipe Feio

P.S. Um conselho: leia a história da ascensão de Hitler, e verá que está enganado. Esse senhor, ao contrário do que diz, foi legitimado nas urnas, muito com a ajuda do grupo de comunicação social de Alfred Hugenberg...

Sem comentários: