"Os limites da nossa condição... Como é espantosa a sua descoberta! Ela é paralela da morte daquilo que descobrimos: só depois da falência das nossas invenções nos descobrimos a nós, os inventores. Jamais o homem terá atingido os seus limites, porque jamais terá deixado de ser tudo aquilo em que existia. O fascinante milagre que é o sabermo-nos vivos, o conhecermos esta incrível iluminação de nós a nós próprios, de nós ao universo, só agora nos perturba, só agora é alucinante, porque só agora é gratuita. Vivemos em nós; a dimensão da infinitude que nos habita, este poder incrível de saber-nos, de sermos uma pessoa, é em nós que se limita e torna espessamente absurdo o desafio que nos lança a contingência e a morte. A experiência de nós próprios, do inverosímil milagre do que somos, é extraordinariamente difícil, meu amigo, e de si mesmo miraculosa. Habita-nos um poder brutal de uma evidência fechada, de uma irredutível necessidade que nos vem deste sentirmo-nos um indivíduo, uma inteireza sem traço de união, um absoluto de presença que recusa a contingência, a ligação com tudo o que nos rodeia, a dependência da fatalidade. E todavia sabemos que a fatalidade existe. Como é possível? Como é possível? Vejo-me, sinto-me, reconheço-me um mundo fechado, indissolúvel, olho as minhas mãos, sei-me, penso-me, reconheço-me uma multidão de ideias, de sensações que me foram habitando, sinto-me eu, um todo, indivisível e irredutível, um ser instalado numa inefável eternidade necessária, um ser com um quê de único, aquele que sou para mim próprio, aquele que sou para os outros como os outros o são para mim no seu tom de voz, no seu modo de gesticularem, na pessoa tão única, tão nítida, tão fascinante que me causa terror. Ah, a terrível dificuldade de apanhar na palavra esta evidência tão flagrante, esta realidade tão vivaz e tão fluida - esta realidade que dura e nos persegue e está ao pé de nós depois de alguém nos morrer... Lembro-me de contar algures a aparição desta certeza na vulgar experiência de nos vermos a um espelho: diante de nós está uma pessoa que nos fita, que é um ser vivo, totalizado, que vê, que pensa, que nos olha, nos olha, nos causa pânico, nos gela de pavor até a uma obscuridade de raízes. Como é ridículo este esforço para captar na palavra este instante infinitesimal em que estou apanhando, num clarão, a fulgurante verdade do que sou! E todavia, só em face dessa alucinante evidência é possível divisar os limites desde onde poderemos sonhar a construção do nosso reino sobre a terra. E é porque é difícil ver, ter a aparição de nós a nós próprios, que os homens se podem construir uma redenção com uma aparência de segurança que os ilude e os escarnece. Para o homem vulgar (para cada um de nós também, quase sempre) a vida resolve-se numa presença em, num ser o mundo que existe como por si mesmo, sem pensar-se que é através de nós, sem um regresso à vertigem de estarmos sendo nós, daquilo que somos. E porque a vida é assim, se resolve assim nessa contrafacção de eternidade, nessa fácil imitação de uma presença divina, nesse inconsciente e ilusório modo de ser-se quotidianamente um deus - por isso, a morte não tem ainda senão um significado de vida: uma presença de nós para lá dela, essa presença que nos inventamos agora, enquanto vivos, como memória, nela, da vida, como é em nós memória, agora, tudo aquilo que já perdemos - a infância, a juventude. Mas a morte é algo de mais incrivelmente absurdo, porque é o nada inimaginável, a impensável destruição do absoluto que conhecemos na irredutível e necessária pessoa que somos. Pobres palavras vãs: um 'nada' imaginamo-lo sempre como algo que é... Mas o nada é a desaparição de nós a nós próprios, a anulação desta evidência que é a pessoa que está em nós, o puro vazio deste quid único, desta realidade que há em nós e nos assusta, porque é terrivelmente viva e verdadeira. [...]
O que há redimir é a adequação deste milagre brutal de nos sabermos uma evidência iluminada, de nos sentirmos este ser que é vivo, se reconhece único no corpo que é ele, na lúcida realidade que o preenche, o identifica nas mãos que prendem, na boca que mastiga, nos pés que firmam, de nos descobrirmos como uma entidade plena, indispensável, porque ela é de si mesma um mundo único, porque tudo existe através dela e é impossível que esse tudo deixe de existir, porque ela irrompe de nós como a pura manifestação de ser, e o 'ser' é a única realidade pensável - o que há a redimir é a adequação desta fantástica evidência que nos cega e a certeza de que ela está prometida à morte, de que o seu destino é impossível e absoluta certeza do não-ser, da pura ausência, da totalidade nula, da pura irrealidade. Colaborar com a vida, aceitar a validade de uma norma, forjar uma regra para a distribuição da nossa acção e interesse - sim. Mas é impossível, antes disso, desviarmos os nossos olhos da fascinação da vertigem, e vermos, vermos bem, de que fundas raíses gostaríamos de entender tudo quanto realizássemos. É uma tentativa absurda, meu amigo, toda a gente no-lo diz - toda a gente que desconhece essa força que nos fascina. Mas eu sei que só se é homem, plenamente, quando se sabe."A escala de tudo quanto povoa a terra estabelece-se-nos aí, no saber. A ilusão de plenitude, a ficção de uma quotidiana divindade, essa que se define por uma certa instalação na permanência, forja-se apenas de uma inconsciência animal. Somos homens, não somos deuses nem pedras. Se a grandeza que nos coube foi essa ao menos de saber, conquistemo-la até onde, nos limites das evidências primeiras, ela se nos anuncia. E se o 'absurdo' é a face desses limites, assumamo-la como quem não rejeita nada do que é ainda nós próprios. A cobardia não está em assumir esses limites, mas em recusá-los, como o não está em reconhecer uma doença, mas em não fitá-la de frente. Só se é justo, corajoso, pela assunção consciente do que nos ameaça e por isso o bruto não é heróico. O 'para quê' que nos antepõem todos os homens sensatos implica um programa utilitário de todo o instinto prático e animal. Mas nós, contra tudo o que povoa a terra, temos o fulminante poder de sabermos quem somos. É aí que cabe a nossa condição, é aí que cabe a nossa interrogação, fascinante e sem limite." (Vergílio Ferreira, Carta ao futuro)
terça-feira, agosto 17, 2010
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