terça-feira, agosto 17, 2010
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"Eis que, porém, depois de todas as negações, depois da falência de todas as formas de uma pacificação, o homem descobre enfim que está só. Todos os brinquedos da nossa infância milenária jazem por terra com as tripas mecânicas de fora, e depois do prazer com que os desventrámos, olhamos, aterrados, por não termos mais brinquedos para desventrar... As horas do nosso abandono ressoam no céu deserto onde só o silêncio responde ao nosso pobre pavor. É pois certo que nada mais há do que esta infinitude limitada, do que este céu recurvo onde um anseio, que projectemos, a si regressa num círculo, como um raio de luz. É pois certo que o nosso reino se descobriu enfim nos limites de um náufrago de mãos vazias e um tugúrio por construir desde o nada. Na terra desabitada, no universo desabitado, o último sol de ocaso prolonga a nossa sombra de estátuas finais que meditam. Um ciclo novo de vida se inicia agora desde o nada absoluto, onde, do mundo antigo, permanece apenas o rasto do espanto, do alarme que não finda. Porque se há uma continuidade na conquista, se os muros que sonhamos erguer para a nossa nova morada não são feitos com as pedras enegrecidas pela pobre candeia que outrora nos iluminou, se às ilusões seculares as reconhecermos como tais e esperamos que, a virem outras, elas sejam as sombras de um sol novo – é absolutamente certo que a surpresa da morte dos deuses não é o aviso da sua ressurreição, como a dor de um pai que nos morreu não é o sinal do seu regresso... Assim, que ninguém se espante do nosso espanto, nem que ninguém sonhe escravizar a nossa melancolia no seu rebanho de escravos: sobre o campo dos mortos, as searas não dão pão para os mortos, mas para os vivos. Sabemos que o céu estava vazio ao terminarmos a sua escalada. Sabemo-lo porque vimos não da luz que vem das coisas, mas da força iluminadora que irrompe de nós próprios e define a nossa presença. Que ninguém nos demonstre o nosso erro nem a nossa verdade: mais forte que toda a demonstração é a evidência feita carne e ossos e sangue e nervos, é esta plenitude sem margem de sermos. A luz que iluminou a presença dos outros, dos que nos precederam, eles a consumiram para si próprios, nesse seu modo de saberem que estavam vivos. A luz que ilumina o estarmos sendo é intransmissível como o sentirmo-nos a viver. Que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro: não se demonstra o ser pedra uma pedra, o ser estrela uma estrela. Mas precisamente por isso, que ninguém nos demonstre que é incoerente e sobretudo insincero, reconhecer a evidência da morte dos deuses e estremecer na angústia de um mundo despovoado, de um universo reduzido à incrível escala humana. Como se a irredutível verdade da morte de alguém, que conhecemos, exigisse a coerência de uns olhos enxutos: mais forte que a certeza da inutilidade da dor é a absoluta presença da dor. Na ilha deserta, a aflição do abandono não reconduz o mundo que se perdeu: é o irremediável sinal de um recomeço, é o anúncio da vida de todo o homem para recriar o mundo. (Vergílio Ferreira, Carta ao futuro)
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