terça-feira, outubro 11, 2011

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"Às tantas vem à tona, tem o nariz a sangrar. Madrugada. Adivinha a madrugada pelo vidro da bandeira da porta. Chega à casa de banho para estancar a hemorragia.
Tonto, a língua encortiçada, diante do espelho do lavatório. De cabeça para trás e o braço no ar parece um cego a pedir passagem. Nessa posição é-lhe difícil ver-se, tem de forçar o olhar ao longo do nariz donde descorrem umas mechas de algodão; os poucos cabelos da calva estão eriçados numa penugem de pássaro esgrouviado. Por trás, ao fundo, reflecte-se a brancura da sanita contra a parede de azulejos: cortando o espelho cai a prumo o fio do autoclismo com o cabo de porcelana. Também a branco, o cabo. Também reluzente.
Elias molha a testa à torneira. Quando torna a endireitar-se é toda a massa do cérebro que se bloqueia com o movimento e tem de se amparar no lavatório para não cair. Cabeça pendida para trás outra vez, braço no ar; a recompor-se nesse vazio dele mesmo, nessa surdez branca e mundo branco, descai os olhos, força-os a seguirem a quilha do nariz até ao espelho e depara novamente com a parede de azulejos em fundo com a sanita. E na sanita está ela: Mena.
Viu-a como se soubesse que ela sempre ali estivera, sentada nua, os cotovelos sobre os joelhos. Os reflexos da luz ora a dissolvem no vidrado do azulejos, ora a recuperam, muito pálida.
Mas há uma sombra que atravessa o espelho por trás dele. Leva um braço levantado como Elias (podia ser a sombra dele próprio a deslocar-se, a abandoná-lo) e na mão erguida tem um dedo a deitar fogo. Fogo não, sangue. Isso, sangue. E quando se chega a Mena, ela, que já estava à espera desse dedo com a boca estendida como um animal amestrado, recebe-o e suga-o. Suga-o numa cadência obediente e sonolenta.
Elias reage. Aproxima-se mais do espelho até o ocupar por completo com o rosto e fita-se demoradamente. Cara a cara com ele, mas incapaz de pensar, apenas a ver-se. Quando se cansa concentra-se num último e silencioso olhar com a dureza de quem volta costas a um irmão.
Dirige-se então à retrete e urina. De braço no ar, sempre de braço no ar, descarrega uma calda ardente e turvada de febre num jacto ruidoso - de cavalo. Esgota-se até à última gota em arrancadas bruscas, quase dolorosas que furam a espuma acumulada no fundo da sanita.
De cara para o tecto, quase solene, quem o visse diria que estava a defazer com a urina quaisquer restos de memória que desejava ignorar."

(José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães)

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