sexta-feira, abril 26, 2013

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"Bem me dizia uma senhora, era mesmo uma senhora, em casa de quem eu andei a trabalhar, mas que depois, coitadinha, acabou por dar em droga: que é preciso a gente meter-se o mais que possa em vale de lençóis, a dormir ou a fazer outra coisa, o Mestre entende-me, para ao menos deixar a gente de pensar que esta vida é um vale de lágrimas."

(David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz)

segunda-feira, abril 22, 2013

Afinidade

"Sentimos uma afinidade com certo pensador porque concordamos com ele; ou porque nos mostra o que já pensávamos; ou porque ele nos mostra de modo mais articulado o que já pensávamos; ou porque nos mostra o que estávamos perto de pensar; ou o que mais cedo ou mais tarde pensaríamos; ou o que teríamos pensado muito mais tarde se o não tivéssemos lido agora; ou o que seria verosímil que pensássemos, mas nunca teríamos pensado se o não tivéssemos lido agora; ou o que teríamos gostado de pensar, mas nunca teríamos pensado se o não tivéssemos lido agora." (Lydia Davis, Contos Completos)

sexta-feira, abril 19, 2013

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"Tu, aos vinte anos. Depois, aos vinte e dois, já tão revolucionariamente liberta dos preconceitos de dois anos antes que até condescendeste, a meu pedido, durante as férias grandes na Foz do Arelho, a que por mais de uma vez te visse inteiramente nua, dentro da barraca de lona isoladamente armada diante do mar, aonde ofegantes chegávamos, manhã cedo, por caminhos diferentes, com um avanço de mais de duas horas sobre a hora de chegada das tuas tias (e era preciso que eu entretanto me escapasse para junto da lagoa, e a toda a gente desse a impressão de que tinha vindo directamente da povoação da praia), mas que minutos esses - ah, que minutos fabulosos! - a ardermos de febre e a tremermos de frio na manhã invariavelmente enevoada, completamente nus, e de pé, perturbados, extáticos, um ao lado do outro, um defronte do outro, de uma das vezes mesmo ambos deitados na areia húmida quase por cima um do outro, e tu com a boca torcida, os olhos alterados, as coxas apertadas em torno da minha mão, mas sem receio já de por instantes gemeres, e eu maravilhado e orgulhoso, deslumbrado e confuso, ao mesmo tempo quase em pânico, por tão de súbito verificar que também vibravas, e que não eram só as outras, venais ou não, já bem rodadas, muitos experientes, que entre as coxas detinham o monopólio do prazer." (David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz)

terça-feira, abril 16, 2013

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"O berço baloiça por cima de um abismo e o senso comum diz‑nos que a nossa vida mais não é do que uma brecha de luz entre duas eternidades de treva. Apesar de gémeas idênticas, vulgar será que o homem olhe com maior calma o abismo pré‑natal do que o outro para o qual se dirige (a qualquer coisa como quatro mil e quinhentas batidas de coração por hora). Sei no entanto de um jovem cronófobo que entrou numa espécie de pânico quando viu pela primeira vez cenas filmadas em sua casa, semanas antes de ter nascido. Viu um mundo praticamente igual — a mesma casa, as mesmas pessoas — mas reparou que ele próprio ainda lá não estava nem havia quem lamentasse a sua ausência. De relance viu a mãe dizer adeus na janela do andar de cima, e esse estranho gesto perturbou‑o como se fora uma misteriosa despedida. Porém, o que mais o assustou foi a imagem de um carro de bebé com o ar pretensioso, com o ar abusivo de um esquife, novinho em folha e parado no vestíbulo; também ele vazio, como se os seus próprios ossos, nessa corrida inversa de factos, se tivessem desintegrado."

(Vladimir Nabokov, Fala, Memória)

quarta-feira, abril 10, 2013

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"Tenho comigo a fotografia de 38 onde nos assemelhamos a dois jovens noivos e é sempre com um nó na garganta que olho esta imagem da nossa passada felicidade!... [...] Partirmos dos dois de mochila às costas cmo quando eramos jovens!... Alpes, Pyreneos, Bretanha - é loucura aquilo que se pode aspirar na vida quando se vai morrer...
Sabes que muitas vezes falávamos de uma filhinha... Que tortura para mim, hoje!... [...] Vês tu, perante a morte, é a vida contigo o que mais me tortura. [...]
E agora, meu amor, vida minha, é preciso deixar-te, dizer-te adeus para sempre. [...]
Adeus pequena... adeus a todos os lugares em que nos amámos."

(Cartas de Fuzilados, Maurice Lacazette, 20.02.1943)

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"Pelo caminho, ao atravessarmos não sei que praça, chegaram-nos ao ouvido os sons de um violino de cego, estropiando uma linda ária. E Ricardo comentou:
- Ouve esta música? É a expressão da minha vida: uma partitura admirável, estragada por um horrível, por um infame executante..."

(Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio)

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"A loucura, objecto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente."

(Machado de Assis, O Alienista)

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"Quando receberem esta carta, já terei sido executado [...]. A vida sobre a terra separou-nos mas é preciso que saibas que o meu pensamento estará sempre contigo. Querida Gilberte, peço-te que sejas corajosa como sempre tens sido, para bem da nossa querida filha. Morrerei com a sua fotografia, tirada no jardim, entre as mãos."

(Cartas de Fuzilados - Louis Chapiro, 11.01.1944)