"- Então que é feito, homem? Não o vejo há muito tempo e tenho pena. Olhe que ainda outro dia falei de si.
- Sim?
- É verdade. Sabe que necessitamos de gente para a Junta de Freguesia e eu sugeri o seu nome. A verdade, meu amigo, é que todos temos obrigação de fazer qualquer coisa. Que diz da minha ideia?
- Nem pense nisso, sr. Engenheiro. Ainda que mo peçam, nunca entrarei para essas coisas. Limito-me a fazer aquilo que sei: chapéus, bonés e barretes.
- Pois tenho pena, meu amigo. Vocês passam a vida a dizer mal e, quando se trata de fazerem qualquer coisa, desaparecem todos.
- Mas eu não digo nada, sr. Engenheiro, nem mal nem bem. Essas coisas não me interessam nem me afectam. De qualquer forma, ainda que eu dissesse mal, não entrava para a Junta de Freguesia ou para qualquer outra junta.
- É o que eu digo: para dizerem mal estão por aqui; para fazerem qualquer coisa, desaparecem.
Não consigo entender o riso. Alguma coisa me há-de fazer rir! O Rodrigues não compreende porque me estou a rir.
- Por mais que queira, não compreendo nem vejo que isso tenha graça. Olhe que é um triste sinal dos tempos e das pessoas...
- Oiça, sr. Engenheiro Rodrigues, olhe que eu não me estou a rir do que o sr. disse. Pelo contrário, admiro a sua ingenuidade.
- Ingenuidade?
- Imagine o sr. Engenheiro que eu fora condenado à morte por uma sentença injusta e que passava os meus dias na cela criticando a sentença e o estado de coisas que a tornara possível. Está a imaginar isto? Pois imagine agora que o carcereiro, farto das minhas críticas permanentes, me vinha propor que eu o auxiliasse a fazer uma corda melhor para a forca, isto sabendo eu que acabaria por ser enforcado por essa corda... Imagine agora que o carcereiro, perante a minha recusa, se afastava pelo corredor fora resmungando que os presos passam a vida a criticar mas que, quando se lhes oferece a possibilidade de concorrerem para o melhoramento das coisas, se recusam a auxiliar os que trabalham cheios de boa vontade. Está a perceber? Não acha que isto revelaria ingenuidade?"
(Luis de Sttau Monteiro, Um Homem não Chora)
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