"O amor é muito mais do que o amor."
(Jacques Chardonne, Claire)
segunda-feira, março 31, 2014
sexta-feira, março 28, 2014
segunda-feira, março 24, 2014
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"Dera ultimamente em ficar até tarde na cama, a ler, a cismar, a fumar, empoçado em si mesmo, a esfiar sonhos e projectos, sobretudo a remexer em venenos de experiência, em lembranças incolores, em nada. Era o seu refúgio. Na melancolia dos dias de chuva, com o cigarro a queimar-lhe os dedos, sem coragem para ler o livro aberto na colcha ou caído no tapete esgarçado, via flutuar as imagens da sua fantasia no ecrã do céu baço e inexpressivo. Adivinhava a tristeza da rua lôbrega, onde o sol mal penetrava, os carros à cunha, o trovejar do tráfego, gritos e pregões, um cheiro de muares suadas, mais longe a agitação dos mercados e dos cais. O mundo em volta dele arfava, um ror de gente labutava desde cedo, e ele ali deitado a suar inquietação, ponto imóvel no centro do universo em movimento, à espera nem sabia de quê, deixando escoar o tempo irreversível. A actividade dos outros atraía-o e aterrava-o. Queria agir, organizar a existência, consagrar-se a alguém, a uma obra: mas todo o seu dinamismo era interior, como o do caleidoscópio: por fora um canudo negro."
(José Rodrigues Miguéis, Idealista no Mundo Real)
(José Rodrigues Miguéis, Idealista no Mundo Real)
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"O grito duma sereia no Tejo rasgou o véu azul da manhã. Baltasar virou-se para as janelas e, com a face apoiada na mão esquerda, ficou a olhá-las. As andorinhas cortavam o ar, explorando os beirais familiares. Adivinhava-se o primeiro espreguiçamento da Primavera no ar quase tépido, e ao fundo, para lá do casario apinhado, a toalha do rio desdobrada ao sol. Nos telhados forrados de musgos, líquenes e gramíneas, enxugava a humidade dos chuveiros da véspera. Era bom estar assim ocioso, a olhar a luz tranquila e perdulária, a sentir crescer no peito e irradiar no corpo inteiro um hálito de íntima e quase dolorosa felicidade. Desejaria eternizar estes instantes, deter a marcha do tempo, ou ficar boiando nele como nas águas dum rio, inerte e ausente, sem pensar na vida, no futuro, no passado sobretudo, livre naquele anel de angústia em que a implacável lucidez do despertar lhe cingia o coração, gozar a paz do esquecimento, ser outra vez pequeno, sonhar um mundo hospitaleiro, não ter remorsos nem pena."
(José Rodrigues Miguéis, Idealista no Mundo Real)
(José Rodrigues Miguéis, Idealista no Mundo Real)
terça-feira, março 18, 2014
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"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta."
(Guerra Junqueiro, Pátria, 1915)
(Guerra Junqueiro, Pátria, 1915)
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