segunda-feira, março 24, 2014

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"Dera ultimamente em ficar até tarde na cama, a ler, a cismar, a fumar, empoçado em si mesmo, a esfiar sonhos e projectos, sobretudo a remexer em venenos de experiência, em lembranças incolores, em nada. Era o seu refúgio. Na melancolia dos dias de chuva, com o cigarro a queimar-lhe os dedos, sem coragem para ler o livro aberto na colcha ou caído no tapete esgarçado, via flutuar as imagens da sua fantasia no ecrã do céu baço e inexpressivo. Adivinhava a tristeza da rua lôbrega, onde o sol mal penetrava, os carros à cunha, o trovejar do tráfego, gritos e pregões, um cheiro de muares suadas, mais longe a agitação dos mercados e dos cais. O mundo em volta dele arfava, um ror de gente labutava desde cedo, e ele ali deitado a suar inquietação, ponto imóvel no centro do universo em movimento, à espera nem sabia de quê, deixando escoar o tempo irreversível. A actividade dos outros atraía-o e aterrava-o. Queria agir, organizar a existência, consagrar-se a alguém, a uma obra: mas todo o seu dinamismo era interior, como o do caleidoscópio: por fora um canudo negro."

(José Rodrigues Miguéis, Idealista no Mundo Real)

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