quarta-feira, maio 26, 2010

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"Há uma tela de Rochegrosse intitulada Angoisse humaine. É um quadro que representa a Vida. No primeiro plano muitas criaturas erguem o braço para chegar mais alto. Homens de casaca tão correctos como se fossem para um baile. Há mulheres decotadas vestidas em rigor. Homens condecorados e homens banais, velhos e moços, misturam-se e empurram-se, disputando-se numa agonia pavorosa, num combate sem nome.
Aquele monte é a Ambição de subir, de que fala Vieira. Atrás, pela riba acima, numa escalada vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam, agarrando-se de pés e mãos, como se após, viessem também correndo numa perseguição fantástica, as ondas dum novo dilúvio.
Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho que na vida leva ao triunfo é uma cena medonha que mais parece a fuga duma derrota.
Todas aquelas cabeças têm o rictus dum Tântalo supremo. São gastas, cansadas, lívidas. Os rostos são pálidos, suados, cor de terra, um não sei quê de loucura e de pesadelo; os olhos brilhantes, emoldurados no bistre das insónias e dos tormentos, as mão crispadas, rapaces, em foice, os vultos rembrandtescos. São ferozes e são crúéis.
A tela é violenta e verdadeira. A vida é aquilo, assim enérica, sinistra, brutal. Não há trégua, não há descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o.
Há um homem de peitilho engomado e cabelo colado sobre as frontes que, sentado, morto, segura não mão inerte e suicida, a coronha dum revólver.
Um grande homem brutal, de camisola, pulou, destruiu o último tapume, frágil afinal como uma convenção, e continua avançando sempre.
Toda aquela populaça, todas aquelas criaturas cuidam só em subir. A certa altura a Morte fixa-as com suas pupilas de aço, hipnotizantes, e elas caem, rolam, afundam-se lá em baixo, onde as espera uma cova aberta, algumas sem terem chegado, outras que pararam finalmente, levando nos olhos um pavor incerto, qualquer coisa de espantoso e indescritível que faz parar o sangue nas artérias.
Por cada um que tomba avançam mil. Trava-se um combate em que o mais cruel, o mais forte, o mais canalha, é o que triunfa. Nada de piedade nem de compaixão. Se não esmagares serás esmagado. Não há tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar seja como for, custe o que custar.
A vida é dos de coração gelado e hirto. Amanhã é tarde, depois é impossível. Tudo na vida é mudável, tudo na vida é transitório. Tudo passa, tudo esquece. A criança será homem, o lacaio será senhor, o arbusto será árvore, o ontem será hoje, o bom será mal. Ai dos que param, ai dos vencidos!
Aquela cena é bem a Vida, esta luta brutal e torturadora que começa quando o sol se ergue loiro e triunfante para só terminar às horas em que tudo parece desolado e morto.
O crepúsculo cai suavemente. Ao longe a casaria branca duma cidade adivinha-se. E as altas chaminés das fábricas atiram para os astros o seu fumo apodrecido e gasto, como um hálito maldito e dosolador."
(Albino Forjaz de Sampayo, Palavras Cínicas)

3 comentários:

vaccavo disse...

Um dos meus livros preferidos.

Filipe Feio disse...

Bom gosto...

Unknown disse...

Um dos mais sinceros ensaios sobre o ser humano. Infelizmente a hipocrisia reina e as máscaras perpetuam em rótulos dos mais variados.