quarta-feira, dezembro 02, 2015
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Eu tenho um amigo que é radical. E tenho outro que é moderado. O meu amigo radical julga-se moderado. E acusa constantemente o meu amigo moderado de ser radical.
sexta-feira, novembro 13, 2015
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"[...] a alegria de abraçá-lo, de lhe falar, de bebermos juntos. Arrastou-me para uma espécie de boîte local, o Ferro-Velho, que é curioso porque diferente (recomendo-lhes que o visitem). Vá de ceia, com cabrito assado e muito regada. Vá de bailarico: Vergílio Ferreira dançando o ié-ié. Cantando baladas coimbrãs, um fadinho rigoroso. Tocando violão. Incendiando a mesa com anedotas picantes. Rindo-se a escâncaras e fazendo rir os mais. Saltando para um banco ao dar da meia-noite, como é o ritual. Descontraído. Todo anti-angústias. Por vezes isolando-se comigo numa palestra mais atenta. Doutrinando-me. Apanhando algumas alfinetadas cá da minha lavra. Animando a solidão em que me encontrara. Deitando à socapa olhares lúbricos a uma admiradora desconhecida [...]
Em suma: encontro original, «mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção - ou não bem de atenção: um pouco de humildade, de uma íntima nudez». Se merece relato, nesta croniqueta amena, a clandestina sortida de um escritor que nos (insistentemente) aparecia confinado num mundo de pura amargura é porque vejo moralidade nisso. É para, de propósito, mais uma vez vos fazer recordar que no Escritor, tal como ele pode querer e consegue impressionar através da palavra, coabita um homem. Um corpo que não abdica de uma alegria breve."
(Luiz Pacheco, O meu fim-de-ano com Vergílio Ferreira no Ferro-Velho, farejando a «Carta ao Futuro», 'Notícia', Luanda, 10.Fev.1968)
Em suma: encontro original, «mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção - ou não bem de atenção: um pouco de humildade, de uma íntima nudez». Se merece relato, nesta croniqueta amena, a clandestina sortida de um escritor que nos (insistentemente) aparecia confinado num mundo de pura amargura é porque vejo moralidade nisso. É para, de propósito, mais uma vez vos fazer recordar que no Escritor, tal como ele pode querer e consegue impressionar através da palavra, coabita um homem. Um corpo que não abdica de uma alegria breve."
(Luiz Pacheco, O meu fim-de-ano com Vergílio Ferreira no Ferro-Velho, farejando a «Carta ao Futuro», 'Notícia', Luanda, 10.Fev.1968)
quinta-feira, novembro 12, 2015
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Esplanada do café, ao meu lado:
- Amigo, desculpe, não me arranja umas moedas... (analisa timidamente a receptividade do seu interlocutor, este impassível)... ou me compra qualquer coisa para comer?
- Arranjo-lhe umas moedas, se precisa. Não sou seu pai. Não quero saber em que vai gastar o dinheiro. É adulto, faz o que entender.
- Obrigado por falar assim. Não é fácil ter de pedir na rua, aos 54 anos...
- Imagino... Não tem de quê. Tome lá, é o que tenho...
- Amigo, desculpe, não me arranja umas moedas... (analisa timidamente a receptividade do seu interlocutor, este impassível)... ou me compra qualquer coisa para comer?
- Arranjo-lhe umas moedas, se precisa. Não sou seu pai. Não quero saber em que vai gastar o dinheiro. É adulto, faz o que entender.
- Obrigado por falar assim. Não é fácil ter de pedir na rua, aos 54 anos...
- Imagino... Não tem de quê. Tome lá, é o que tenho...
quinta-feira, novembro 05, 2015
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"Com o correr dos anos, observei que a beleza, tal como a felicidade, é frequente. Não se passa um dia em que não estejamos, um instante, no paraíso."
(Jorge Luis Borges, Os Conjurados)
(Jorge Luis Borges, Os Conjurados)
quarta-feira, novembro 04, 2015
A SOMA
Diante da cal de uma parede que nada
nos impede de imaginar infinita
sentou-se um homem que premedita
traçar com rigorosa pincelada
na branca parede o mundo inteiro:
portas, balanças, sedimentos, jacintos,
anjos, bibliotecas, labirintos,
âncoras, Uxmal, o infinito, o zero.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que em curiosos dons não é avara,
permite-lhe dar fim à sua porfia.
No preciso instante da morte
descobre que essa vasta algaravia
de linhas é a imagem da sua cara.
(Jorge Luis Borges, Os Conjurados)
nos impede de imaginar infinita
sentou-se um homem que premedita
traçar com rigorosa pincelada
na branca parede o mundo inteiro:
portas, balanças, sedimentos, jacintos,
anjos, bibliotecas, labirintos,
âncoras, Uxmal, o infinito, o zero.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que em curiosos dons não é avara,
permite-lhe dar fim à sua porfia.
No preciso instante da morte
descobre que essa vasta algaravia
de linhas é a imagem da sua cara.
(Jorge Luis Borges, Os Conjurados)
sábado, outubro 31, 2015
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- Mestre, desculpe-me, tenho estado a pensar: porque é que eu acredito naquilo em que acredito?
- Talvez precises de acreditar, gafanhoto. Talvez precises...
- Mestre, mas porque é que eu preciso de acreditar?
...
- Gafanhoto, repara no homem que se equilibra no topo daquela escada...
- Refere-se ao que se encontra a reparar a cobertura do templo, mestre?
- Sim, gafanhoto, esse mesmo. Aquela escada é a sua ferramenta de trabalho há mais de vinte anos, labor do qual depende o sustento da sua numerosa família. Vivendo inevitavelmente no limite das suas economias, não tem, nem terá nunca, dinheiro para comprar uma nova. Aquela terá de servir, mesmo estando já oca, âmago minuciosamente devorado por um incansável exército de insectos xilófagos.
- Mas é perigoso, mestre. Põe em risco a sua vida. Porque sobe então ele, se pode cair lá de cima a qualquer momento?
- ...
- Talvez precises de acreditar, gafanhoto. Talvez precises...
- Mestre, mas porque é que eu preciso de acreditar?
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- Gafanhoto, repara no homem que se equilibra no topo daquela escada...
- Refere-se ao que se encontra a reparar a cobertura do templo, mestre?
- Sim, gafanhoto, esse mesmo. Aquela escada é a sua ferramenta de trabalho há mais de vinte anos, labor do qual depende o sustento da sua numerosa família. Vivendo inevitavelmente no limite das suas economias, não tem, nem terá nunca, dinheiro para comprar uma nova. Aquela terá de servir, mesmo estando já oca, âmago minuciosamente devorado por um incansável exército de insectos xilófagos.
- Mas é perigoso, mestre. Põe em risco a sua vida. Porque sobe então ele, se pode cair lá de cima a qualquer momento?
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segunda-feira, julho 13, 2015
#mariacapaz
Dona Gertrudes, proprietária do café aqui da rua, cuida há anos de uma cadelinha rafeira muito simpática, que baptizou de Maria, e que tem o hábito de vadiar livremente pelo bairro e redondezas. Quando se lhe dá a sede ou a fome, é vê-la correr desconjuntadamente em direcção ao café da dona adoptiva. Três altos degraus a separam do interior do estabelecimento, onde dois pratos a aguardam, sempre, com água e ração, respectivamente. Ora, o problema é que Maria só tem três patas, vítima que foi de um atropelamento - ainda cachorra e já abandonada - frente ao tasco daquela que (veja-se a sorte a nascer do azar) viria a ser sua dona. Não é incomum dar com ela a debater-se, entre latidos e gemidos, para conseguir escalar aquela montanha em forma de escadaria. Habitual também é ver um freguês, assistindo desconfortável ao esforço da cadela pela primeira vez, levantar-se para ajudar. "Deixe estar que ela é capaz, senhor. Não se incomode que a Maria é capaz", atira dona Gertrudes de trás do balcão, invariavelmente...
sábado, julho 11, 2015
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Aquele momento em que subitamente te cruzas com João César das Neves numa livraria e em que ficas sem saber o que fazer: se um jab ou se um uppercut.
sexta-feira, julho 10, 2015
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O vídeo em que Guy Verhofstadt se dirige a Tsipras foi amplamente divulgado. Alguns cronistas da nossa praça não resistiram a dar destaque enviesado ao episódio. Nas suas prosas, descrevem um Tsipras constrangido, desconfortável, comprometido, esmagado até, perante a argumentação do agitado belga. Insinuam que o grego não teve outra hipótese se não a de se remeter a um revelador silêncio, não tendo o que responder a tão iluminada criatura. Não sei se é fundamentalismo, pura limitação, se subitamente lhes pára o cérebro, ficando incapazes de analisar com objectividade a situação, projectando no silencioso grego aquilo que desejam ardentemente que ele esteja a sentir, tal é a excitação que sobrevém (Tsipras estava, obviamente, e como manda o protocolo, a aguardar a sua vez de intervir - o vídeo do momento em que o faz está disponível); ou se é algo muito pior, já do domínio da abjecção, sobretudo quando se trata de alguém inteligente: a deliberada desonestidade intelectual. Eu teria vergonha...
quarta-feira, julho 08, 2015
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"The cradle rocks above an abyss, and common sense tells us that our existence is but a brief crack of light between two eternities of darkness. Although the two are identical twins, man, as a rule, views the prenatal abyss with more calm than the one he is headed for (at some forty-five hundred heartbeats an hour). I know, however, of a young chronophobiac who experienced something like panic when looking for the first time at homemade movies that had been taken a few weeks before his birth. He saw a world that was practically unchanged — the same house, the same people — and then realized that he did not exist there at all and that nobody mourned his absence. He caught a glimpse of his mother waving from an upstairs window, and that unfamiliar gesture disturbed him, as if it were some mysterious farewell. But what particularly frightened him was the sight of a brand-new baby carriage standing there on the porch; even that was empty, as if, in the reverse order of events, his very bones had disintegrated."
(Vladimir Nabokov, Speak, Memory: An Autobiography Revisited)
(Vladimir Nabokov, Speak, Memory: An Autobiography Revisited)
terça-feira, julho 07, 2015
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Há pouco, estive a ler uma história infantil muito bonita, que todos os pais deviam ler a seus filhos. Era sobre três meninos: Helmut, Georgios e José. Helmut, maior e mais forte, passava a vida a maltratar Georgios e José, que muito iam sofrendo com os abusos do brigão. Lamentando-se um ao outro, iam sonhando com um futuro em que, juntos, fariam frente ao brutamontes. Até que um dia, depois de mais um empurrão, e cansado de tanta humilhação, Georgios se ergue e se revolta, fazendo frente a Helmut. "Não, mais não. Chega!." José, presenciando a cena, rapidamente se demarca de Georgios. Repudiando-o veementemente pela sua afronta, faz saber a Helmut que, depois da sova merecida que deverá dar a Georgios, gostaria também muito de levar a sua.
quarta-feira, junho 03, 2015
Louro, o "jornalista"
Gostava de dedicar o seguinte microconto à autora das reportagens sobre exorcismos e possessões demoníacas publicadas no jornal 'i' no passado sábado:
Louro, o "jornalista"
Na papelaria da zona onde habito,
há um papagaio que repete o que lhe é dito.
Louro, o "jornalista"
Na papelaria da zona onde habito,
há um papagaio que repete o que lhe é dito.
sábado, maio 30, 2015
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Boris: Nothingness. Non-existence. Black emptiness.
Sonja: What did you say?
Boris: Oh, I was just planning my future.
(Woody Allen, Life and Death)
Sonja: What did you say?
Boris: Oh, I was just planning my future.
(Woody Allen, Life and Death)
quinta-feira, maio 28, 2015
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"Pois se existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de desesperar com ela, mas o de esperar uma outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta."
(Albert Camus, Núpcias)
(Albert Camus, Núpcias)
quarta-feira, maio 27, 2015
você é a melhor coisa
amor,
você é a melhor coisa que já me aconteceu
de longe você é a melhor coisa que deus me deu
e isso pode te dar uma ideia
[ainda que vaga]
da grande merda que tem sido a minha vida
(Geruza Zelnys, Esse livro não é pra você)
você é a melhor coisa que já me aconteceu
de longe você é a melhor coisa que deus me deu
e isso pode te dar uma ideia
[ainda que vaga]
da grande merda que tem sido a minha vida
(Geruza Zelnys, Esse livro não é pra você)
quinta-feira, maio 21, 2015
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No restaurante, ao meu lado:
- Mãe, não me apetece mais...
- Se não comeres tudo chamo o subcomissário Filipe Silva.
- Mãe, não me apetece mais...
- Se não comeres tudo chamo o subcomissário Filipe Silva.
quarta-feira, maio 20, 2015
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Carente de orientação espiritual, decidi inteirar-me da oferta de guias disponíveis, e, só assim de rajada, dei de caras com a taróloga e astróloga Maria Helena, animando as manhãs da SIC com a sua varinha mágica, com a Alexandra Solnado, que vai publicando no Facebook aquilo que Jesus lhe confidencia directamente, e com o Pe. Sousa Lara, grande exorcista que vem alertando para o avanço das forças diabólicas, enquanto afugenta demónios nas traseiras do Santuário de Lamego.
Necessitado que estava de consolo para este pobre espírito, em vez de escolher um dos três, decidi adoptá-los a todos. Se posso seguir um trio de iluminados, porque hei-de contentar-me com apenas um? Assim fiz, e de imediato comecei a agir de acordo com os seus ensinamentos. Mas a verdade é que, à medida que ia aprofundando os meus conhecimentos acerca daquilo que professam, foram chegando os problemas.
Ora, a taróloga e astróloga Maria Helena, além de oferecer amuletos em barda, dá consultas de tarô, reiki, astrologia, cura cármica, quiromancia e limpeza energética. Como se isso não bastasse, fala constantemente em Jesus Cristo, na Virgem e nos santos e apóstolos, oferecendo orações para os mais variados propósitos- o que é excelente, porque embora trabalhe com ferramentas mais esotéricas, mantém a ligação a essa forma eclesiástica de acesso ao divino. Algo que me parece dar-lhe força, dada a evidente riqueza de competências, e acrescentar-lhe credibilidade, por não renegar uma certa tradição.
O problema é que o Pe. Sousa Lara (repito: padre), responsável por distribuir a Palavra, avisou recentemente que as pessoas recorrem em massa a videntes, bruxos, tarô, terreiros, astrologia, reiki e ioga, sem o saberem, estão a abrir portas do mundo espiritual à entrada do demónio. Até usam imagens de Cristo, acusa o sacerdote. Um católico não deve, nem pode, recorrer a qualquer forma de adivinhação. A Bíblia condena essas práticas em várias passagens e qualquer adivinhação tem por detrás uma ligação ao demónio, alerta...
Pois desconfio que a senhora Maria Helena faça parte das personagens visadas pelo sacerdote nas suas palavras. Assim sendo, depositei então as minhas esperanças na Alexandra, com quem Jesus comunica directamente...
Diga-se que não ajudou grande coisa. Ora, se Jesus até a trata por "cabrita", o que me parece extremamente intimista, porque razão coloca Alexandra na sua página de Facebook as palavras que Ele lhe diz acompanhadas por imagens de pessoas em posições de ioga? Porque é que Ele não a avisa, se aquilo se trata afinal de disciplina demoníaca? E se, como afirma o Pe. Sousa Lara, essas actividades esotéricas contribuem para o aumento das possessões demoníacas, como se explica que Jesus tenha escolhido a Alexandra para comunicar connosco, uma pessoa que faz regressões a vidas passadas, cursos de astrologia evolutiva, limpezas espirituais e massagens de luz?
Enquanto vou reflectindo acerca destas questões, bebo uma mini, que se me não acaba com as dúvidas, mata pelo menos a sede...
Necessitado que estava de consolo para este pobre espírito, em vez de escolher um dos três, decidi adoptá-los a todos. Se posso seguir um trio de iluminados, porque hei-de contentar-me com apenas um? Assim fiz, e de imediato comecei a agir de acordo com os seus ensinamentos. Mas a verdade é que, à medida que ia aprofundando os meus conhecimentos acerca daquilo que professam, foram chegando os problemas.
Ora, a taróloga e astróloga Maria Helena, além de oferecer amuletos em barda, dá consultas de tarô, reiki, astrologia, cura cármica, quiromancia e limpeza energética. Como se isso não bastasse, fala constantemente em Jesus Cristo, na Virgem e nos santos e apóstolos, oferecendo orações para os mais variados propósitos- o que é excelente, porque embora trabalhe com ferramentas mais esotéricas, mantém a ligação a essa forma eclesiástica de acesso ao divino. Algo que me parece dar-lhe força, dada a evidente riqueza de competências, e acrescentar-lhe credibilidade, por não renegar uma certa tradição.
O problema é que o Pe. Sousa Lara (repito: padre), responsável por distribuir a Palavra, avisou recentemente que as pessoas recorrem em massa a videntes, bruxos, tarô, terreiros, astrologia, reiki e ioga, sem o saberem, estão a abrir portas do mundo espiritual à entrada do demónio. Até usam imagens de Cristo, acusa o sacerdote. Um católico não deve, nem pode, recorrer a qualquer forma de adivinhação. A Bíblia condena essas práticas em várias passagens e qualquer adivinhação tem por detrás uma ligação ao demónio, alerta...
Pois desconfio que a senhora Maria Helena faça parte das personagens visadas pelo sacerdote nas suas palavras. Assim sendo, depositei então as minhas esperanças na Alexandra, com quem Jesus comunica directamente...
Diga-se que não ajudou grande coisa. Ora, se Jesus até a trata por "cabrita", o que me parece extremamente intimista, porque razão coloca Alexandra na sua página de Facebook as palavras que Ele lhe diz acompanhadas por imagens de pessoas em posições de ioga? Porque é que Ele não a avisa, se aquilo se trata afinal de disciplina demoníaca? E se, como afirma o Pe. Sousa Lara, essas actividades esotéricas contribuem para o aumento das possessões demoníacas, como se explica que Jesus tenha escolhido a Alexandra para comunicar connosco, uma pessoa que faz regressões a vidas passadas, cursos de astrologia evolutiva, limpezas espirituais e massagens de luz?
Enquanto vou reflectindo acerca destas questões, bebo uma mini, que se me não acaba com as dúvidas, mata pelo menos a sede...
quinta-feira, abril 30, 2015
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Uma jovem lê 1984, de George Orwell. Ao seu lado, uma outra, pouco mais velha, joga Candy Crush. A humanidade inteira viaja na linha azul do metropolitano...
terça-feira, abril 14, 2015
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"QUALQUER MANEIRA DE COMEÇAR É UMA BOA MANEIRA DE COMEÇAR. (De um manual arcaico de contadores de histórias.)
Tenho cinquenta e oito anos, um clássico da literatura à minha esquerda, sobre a mesa, fumo uma cigarrilha, estou forrado de roupão, de tranquilidade - e do silêncio um pouco embaciado pelo fumo, raspado lá fora por pneus que rangem. O som dos taipais corridos de repente, uma buzina estridente e ilegal, e a voz, feita de arranques e de paragens, do meu irmão, com movimentes de mãos e surpresas na cara, como fazia o Mickey Rooney, isso foi optem: quando este livro já andava no ar, como pássaro de papel, no espaço escolhido e geométrico de uma casa instalada na solidão da noite. Sinto-me só e decidido a apresentar, na travessia dos anos, as poucas artes fundamentais do meu papel em palcos do embaraço, do desembaraço, do alvoroço e do medo. Aceite o leitor: há privilégios habitualmente pequenos e duráveis, no reino dos olhos quietos e das horas de espanto, da música, da prata que mora nas salinas, ou que cintila em mares surpreendentes, nas árvores outonais, com folhas que voam na direcção do Inverno, ficando naturalmente pelo caminho, o frio e a lareira dos antepassados, parados numa gravura de parede, os dedos nos cabelos, a palavra no ouvido, a água pesada da mágoa do mundo, depois a dos teus olhos - inocente.
(Duas horas da manhã. As palavras procuram-se. A Dulce dorme lá dentro. Sossegadamente, espero.)
Nos últimos tempos, a minha relação com os outros (e com o mundo) é alterada amiúde pelas pausas em que me coloco - blocos de navegação onde, à deriva, a solidão trabalha. Pontos de apoio, ou de resguardo, quilhas do barco onde vou - podem ser objectos, lugares, um livro, uma conversa, a carta da minha filha que estremece nas minhas mãos, quando chega, ou um terraço de localização indefinida, onde gira eternamente a roda de uma velha bicicleta à luz da estrelas."
(Dinis Machado, Reduto quase final)
Tenho cinquenta e oito anos, um clássico da literatura à minha esquerda, sobre a mesa, fumo uma cigarrilha, estou forrado de roupão, de tranquilidade - e do silêncio um pouco embaciado pelo fumo, raspado lá fora por pneus que rangem. O som dos taipais corridos de repente, uma buzina estridente e ilegal, e a voz, feita de arranques e de paragens, do meu irmão, com movimentes de mãos e surpresas na cara, como fazia o Mickey Rooney, isso foi optem: quando este livro já andava no ar, como pássaro de papel, no espaço escolhido e geométrico de uma casa instalada na solidão da noite. Sinto-me só e decidido a apresentar, na travessia dos anos, as poucas artes fundamentais do meu papel em palcos do embaraço, do desembaraço, do alvoroço e do medo. Aceite o leitor: há privilégios habitualmente pequenos e duráveis, no reino dos olhos quietos e das horas de espanto, da música, da prata que mora nas salinas, ou que cintila em mares surpreendentes, nas árvores outonais, com folhas que voam na direcção do Inverno, ficando naturalmente pelo caminho, o frio e a lareira dos antepassados, parados numa gravura de parede, os dedos nos cabelos, a palavra no ouvido, a água pesada da mágoa do mundo, depois a dos teus olhos - inocente.
(Duas horas da manhã. As palavras procuram-se. A Dulce dorme lá dentro. Sossegadamente, espero.)
Nos últimos tempos, a minha relação com os outros (e com o mundo) é alterada amiúde pelas pausas em que me coloco - blocos de navegação onde, à deriva, a solidão trabalha. Pontos de apoio, ou de resguardo, quilhas do barco onde vou - podem ser objectos, lugares, um livro, uma conversa, a carta da minha filha que estremece nas minhas mãos, quando chega, ou um terraço de localização indefinida, onde gira eternamente a roda de uma velha bicicleta à luz da estrelas."
(Dinis Machado, Reduto quase final)
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