terça-feira, dezembro 31, 2013

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"Por definição, detesto as equipas e as colaborações. Uma obra que conta é um grito de solidão, uma necessidade. Ninguém pode respirar, escrever ou morrer em meu lugar. Não se pode morrer em comissão."

(George Steiner, Quatro Entrevistas Com)

sexta-feira, dezembro 27, 2013

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"Aquele que se sente pequeno passa a vida a pôr-se em bicos de pés."

(Adágio que não é mas que bem podia ser)

quinta-feira, dezembro 26, 2013

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"A vida é um soco no estômago."

(Clarice Lispector, A Hora da Estrela)

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"Só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim."

(Clarice Lispector, A Hora da Estrela)

domingo, dezembro 22, 2013

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No lar Nossa Senhora da Luz, na aldeia alentejana de Albernoa, lamentam-se as vidas que o mar chamou a si. Um dos náufragos era filho da terra, e diz quem o conheceu que "sempre foi muito amigo de ir ao peixe."

sábado, dezembro 21, 2013

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"Quando o grande senhor passa, o camponês sábio faz uma grande vénia e solta um peido silencioso." (Provérbio Etíope)

quarta-feira, dezembro 11, 2013

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"[...] há quem diga a vida é um pau de fósforo."

(José Tolentino Mendonça)

segunda-feira, novembro 11, 2013

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"Uma filosofia consoladora concordante com a religião pretende que a dependência em que a alma está dos sentidos e dos órgãos é apenas fortuita e passageira, e que ela será livre e feliz quando a morte do corpo a tiver libertado desses poderes tirânicos. É muito belo, mas, religião à parte, não é seguro. Portanto, como não posso ter a certeza perfeita de ser imortal a não ser depois de ter deixado de viver, hão-de perdoar-me se não tenho pressa de conseguir conhecer tal verdade."

(Giacomo Casanova, História da Minha Vida)

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"Se bem que o homem seja livre, não se deve contudo julgar que é senhor de fazer tudo o que quer. Torna-se escravo logo que se determina a agir quando é agitado por uma paixão. [...] Aquele que tem a força de suspender os seus actos até que chegue a calma, esse é o sábio. É um ser raro."

(Giacomo Casanova, História da Minha Vida)

domingo, novembro 10, 2013

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"[...] queria conhecê-la, retê-la ao menos um momento, saber como, quem era, olhou ainda à volta, desistiu em seguida e com fúria insofrida começou a subir a avenida, por todo o lado luzes lojas anúncios, beba cerveja, visite as vistas, vista as visitas, emagreça, coma, veja, Yvette é diferente de Irene mas ambas preferem modess, compre gess kleenex reglex mex, ponha o tampão, tampe o porão, afague o grelo para que cresça, aplique a pica na pombinha, afogue o fogo enquanto é novo, esfole o fole enquanto é jovem, amole a mola enquanto pode, use a caneta se lhe dá na veneta, meta o grego na greta, molhe a marreta na vala estreita, vergue a vara na valeta, vá ao veio e volte cedo, esprema o mamão no matacão, um bom colchão dá tesão, olhe em todas a direções cuidado com os aviões, ordens conselhos sugestões, publicidade até à náusea, entrou num bar, bebeu um bagaço que lhe soube a escarro, saiu pior que entrara, estômago e boca numa brasa, pensamentos perplexos perturbavam-lhe o cérebro baralhado por incongruentes factos gestos frases e um remorso vago [...]"

(Almeida Faria, Rumor Branco)

quarta-feira, novembro 06, 2013

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"Conta uma velha piada da República Democrática Alemã que um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda a sua correspondência será lida pelos censores, ele diz aos amigos: «Vamos combinar um código: se receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa.» Passado um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita a azul: «Tudo é uma maravilha por aqui: as lojas estão abastecidas, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance — a única coisa que não temos é tinta vermelha.» Esta situação não é a mesma que vivemos hoje? Temos toda a liberdade que desejamos, a única coisa que nos falta é a «tinta vermelha»: «sentimo-nos livres» porque nos falta a linguagem para articular a nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual — «guerra ao terrorismo», «democracia e liberdade», «direitos humanos», etc., etc. — são termos falsos, que mistificam a nossa perceção da situação, em vez de permitirem que pensemos nela."

(Slavoj Žižek, O Ano em que Sonhámos Perigosamente)

segunda-feira, novembro 04, 2013

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"[...] The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity."

(William Butler Yeats, The Second Coming)

sexta-feira, novembro 01, 2013

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Nunca li nada de Valter Hugo Mãe (sim, com maiúsculas!). Tenho em casa O Remorso de Baltazar Serapião, o tal suposto "tsunami literário" com que venceu o prémio Saramago. Ontem, li a entrevista que deu à Ler do mês passado: as suas respostas são de tal forma banais e superficiais - e a momentos tão absurdas ou narcísicas - que duvido que alguma vez venha a pegar no romance...

Deixo um pequeno excerto:

"Continua com vontade de ter um filho?
Continuo. A minha vida não está preparada para um filho, ainda não sei tomar conta de mim. Acho que a solteirice aguda me cria muito medo, muito respeito, não tenho uma casa preparada para crianças, tudo na minha casa magoa, tudo se parte, tudo é tão delicadozinho, parece um museu de tralhas afetivas. Uma criança chegava ali e partia-me tudo. Se tivesse um filho tinha de preparar a casa, arrumar os 'biscuits' para um uso mais pragmático. A minha casa não serve muito para viver, é assim uma coisa de passeio.

Mas é uma dimensão que queria ter?
É. Tenho uma amiga que me anda a puxar para ir a um orfanato onde há crianças de sete, oito, nove anos, as que têm mais dificuldade em serem adotadas.Talvez uma criança com essa idade me seja mais fácil receber, e ao mesmo tempo também é uma aventura muito incrível, acolher-se uma pessoa que talvez já não tenha esperança nenhuma de ter um vínculo familiar profundo, e dizer-lhe que ela também tem direito a tudo. O meu quarto de hóspedes talvez venha a ser o quarto de uma menina. As meninas são mais misteriosas e têm mais que se lhe diga, são mais interessantes. Jogam menos cartas e conversam mais."

quarta-feira, outubro 30, 2013

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"Temos dificuldade em compreender nos outros aquilo que não somos capazes de viver."

(António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã)

sexta-feira, outubro 25, 2013

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"The clear awareness of having been born into a losing struggle need not lead one into despair. I do not especially like the idea that one day I shall be tapped on the shoulder and informed, not that the party is over but that it is most assuredly going on - only henceforth in my absence. (It's the second of those thoughts: the edition of the newspaper that will come out on the day after I have gone, that is the more distressing.) Much more horrible, though, would be the announcement that the party was continuing forever, and that I was forbidden to leave. Whether it was a hellishly bad party or a party that was perfectly heavenly in every respect, the moment that it became eternal and compulsory would be the precise moment that it began to pall."

(Christopher Hitchens, Hitch-22: A Memoir)

quinta-feira, outubro 24, 2013

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"We're all going to die, all of us, what a circus! That alone should make us love each other but it doesn't. We are terrorized and flattened by trivialities, we are eaten up by nothing."

(Charles Bukowski)

quarta-feira, outubro 23, 2013

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"Geralmente as mulheres gostam de jardineiros. A sua intimidade com a natureza, os seus conhecimentos um pouco misteriosos semeados de palavras latinas, o seu respeito pelo tempo, pelas estações e pelas lentidões necessárias, a sua preocupação com o prazer: tudo isto seduz. Sem esquecer alguns atributos físicos que atordoam algumas, como as mãos largas com calos, as feições vincadas pelo ar puro, os cheiros penetrantes que produzem, a mistura de suor e terra ao fim de um árduo dia de trabalho... Sem esquecer também que um cenário propício a abraços inéditos, como um recinto de sebes ou por trás das treliças, traz mais ideias novas do que as paredes do quarto conjugal. Em todas as épocas, foram muitas as que cederam aos encantos desta corporação."

(Érik Orsenna, O Jardineiro do Rei-Sol)

terça-feira, outubro 22, 2013

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"Senhor, estamos num mundo de estropiados em marcha."

(José Cardoso Pires, E Agora, José?)

sexta-feira, outubro 18, 2013

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Juntos

O país que inventámos
Sem querer

(Alberto de Lacerda, O Pajem Formidável dos Indícios)

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"Quando a Natália [Correia] e a irmã desciam a Morais Soares, as árvores afastavam-se para elas passarem."

(Manuel da Fonseca)

O Girassol de Rio de Onor

Existe juro um girassol em rio de onor
mais importante por exemplo para mim que seja lá quem for
Eu vi hoje na andaluzia o girassol de rio de onor
à beira de uma estrada pouco antes de chegar a fernan nuñez
(Amigos que passais em direcção a córdova ou aos cobres de lucena
dai-me notícias desse girassol menos brilhante sol
mas bem mais acessível pelo menos para nós que não temos raízes
mas pomos o que temos sobre a terra)
Reconheci-o logo embora há muitos anos o não visse
além de o conhecer sabia ser ele natural de rio de onor
e lá habitualmente residente
É ele raios o partam disse idênticas as pétalas igual a cor
é ele ó céus é ele sem tirar nem pôr
o meu amigo girassol de rio de onor
(é fácil ter na flor um verdadeiro amigo
se o não sabíeis antes desde agora que o sabeis)
Era mesmo era ele sem tirar nem pôr
o girassol de rio de onor há tantos anos visto
Mas nós os que lá fomos e por lá passámos
nós é que já não somos quem lá fomos
e muito menos nós que somos vivos menos os mesmos somos
que tu ó meu amigo com as tuas
duas pernas pendentes lá da ponte sobre o rio
pequena ponte e diminuto rio
a dois passos dos olhos tão redondos que solares
dessas duas ou três quatro no máximo crianças
(meu deus essas crianças onde é hoje o seu país?)
Viajo pela espanha mas é este julgo juro o girassol
pois embora não esteja em portugal
não há ainda julgo plantas nacionais
e além disso aquela terra é meio espanhola
Mas nós que assim passamos pelos campos pelos dias
nós que não temos nem nunca tivemos
coisa pequena como uns palmos de país
pomos tudo o que somos nestes seres que passamos
e nos fixamos só em certas fotografias que tiramos
Era aquele julgo juro o girassol de há anos
mas nós que como sombras por aqui passamos
porventura seremos os que éramos há anos?
Qual é ao certo o nosso verdadeiro país?
Lanço a pergunta aos verdes campos outonais da andaluzia
mas esta paisagem que tanto me diz
quem sou isso é que ela nem ninguém mo diz

(Ruy Belo)

segunda-feira, outubro 14, 2013

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"Sim, é tempo de assentar, de crescer. Na verdade, nem há escolha: não assentar e não crescer está a dar cabo de mim. Tenho de desistir disso, de ser novo, antes que seja tarde demais."

(Martin Amis, Dinheiro)

Interiores

Onde estamos agora que não nos vemos,
tu sentada diante da TV
e eu escrevendo isto, não sei o quê,
como outros dois que nós não conhecemos?

Será que alguma coisa permaneceu
do nosso amor como uma inevitabilidade,
uma saudade pousada agora na mão de Deus
existindo para sempre na sua breve eternidade?

Talvez percorramos uma rota circular
através da curvatura do espaço e do tempo
onde haveremos de nos reencontrar;
será que então de alguma forma nos reconheceremos?

(Manuel António Pina, Os Livros)

O Grito

Não valia a pena esperar, ninguém viria
que nos segurasse a cabeça e nos pegasse nas mãos,
estávamos sós e essa solidão éramos nós;

e era indiferente sabê-lo ou não,
ou gritar (ou acreditar), porque ninguém ouvia:
o grito era a própria indiferença.

Presente, apenas presente;
a memória, presente,
a esperança, presente.

E, no entanto, houvera um tempo
em que tínhamos sido talvez felizes,
quando não nos dizia respeito a felicidade,

e em que tínhamos estado perto
de alguma coisa maior que nós
ou do nosso exacto tamanho.

Como um animal devorando-se
por dentro a si mesmo,
consumira-se, porém,

o pouco que nos pertencera, os dias e as noites,
a certeza e o deslumbramento, a cerejeira e a
palavra “cerejeira” ainda em carne na jovem boca.

Nenhuma beleza e nenhuma verdade que nos salvasse,
nenhuma renúncia que nos prendesse
ou nos libertasse, nenhuma compaixão que

nos devolvesse o ser
ou o mesmo,
ou fosse a morada de algo inumano como um coração.

Nenhuns passos ecoavam no grande quarto interior,
nenhumas pálpebras se abriam,
como poderíamos não nos ter perdido?

Entre 10 elevado a mais infinito
e 10 elevado a menos infinito,
uma indistinta presença impalpável na indiferença azul,

sós,
sem ninguém à escuta,
nem a nossa própria voz.

(Manuel António Pina, Os Livros)

sexta-feira, outubro 11, 2013

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"É a este retorno a nós mesmos que a adversidade nos força, e talvez seja isso que a torna mais insuportável para a maioria dos homens."

(Jean-Jacques Rousseau, Os Devaneios do Caminhante Solitário)

quinta-feira, outubro 10, 2013

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Entretido que estava com a leitura de Uma Abelha na Chuva, eis se não quando, subitamente, no início do capítulo quarto, ao passar por "Quando estiou, partiram", me lembrei de Manuela Moura Guedes...

E a mentir estaria se dissesse que não voltei atrás para ver como ficaria se Carlos de Oliveira tivesse optado por "Quando estilou, partiram."

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"Não conheço melhor receita para aprendizes de escritores que aquela que se contém neste provérbio coreano: «Quando desenhares a cobra não lhe ponhas as patas, nem que seja para a embelezares»."

(José Cardoso Pires, O Tempo e o Modo, nº 6, Junho de 1963)

quarta-feira, outubro 09, 2013

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"Contudo, para além do entretenimento,obtém-se algo mais da leitura na cama: um tipo especial de privacidade. Ler na cama é um acto egocêntrico, imóvel, livre das convenções sociais comuns, invisível aos olhos do mundo e, por se passar entre os lençóis, no reino da luxúria e do ócio pecaminoso, com o picante das coisas proibidas. Talvez seja a recordação dessa leituras nocturnas que empresta aos romances de John Dickson Carr, Michael Innes, Anthony Gilbert – todos lidos durante as férias de Verão da minha adolescência – uma certa tonalidade erótica. A frase casual «levar um livro para a cama» sempre me pareceu carregada de expectativas sensuais."

(Alberto Manguel, Uma História da Leitura)

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"Há assim uma vontade de viver sem nada recusar da vida que é a virtude que eu mais venero neste mundo."

(Albert Camus, L'Été)

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"Os homens e as sociedades definem-se tanto ou mais pelo que calam, que pelo que dizem."

(Jorge de Sena, revista O Tempo e o Modo, Junho de 1963)

segunda-feira, outubro 07, 2013

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"Bastante tarde é que comecei a dar-me conta deste processo monstruoso que impende sobre as pessoas. Porque a morte é natural, se anda lá por longe. Que é assim. Que é o destino de todos. Mas quando foi dos meus pais, pareceu-me acabar-se o mudo, não estava ainda calejada, é difícil perceber, será que os jovens sofrem mais? Depois passou. Tudo passa, tudo esquece. E só nos últimos anos, já pesando a idade e começando a desaparecer, hoje um outro amanhã, velhos amigos ou simples conhecidos e, com ela, o meu tempo, a morte se tornou uma inimiga digamos que pessoal."

(Mário Dionísio, A morte é para os outros)

sexta-feira, outubro 04, 2013

José Cardoso Pires

"Encontrei-o pela primeira vez em casa da Snu Abecassis, gerente das Publicações Dom Quixote, por ocasião dum cocktail festivo: Ievtuchenko em Lisboa, duas dezenas de convites. O Cardoso Pires estava por lá, com os olhos pequenos a espreitar tudo, e pareceu-me desconfiado. Mas não, não era desconfiança. O Cardoso Pires, basta a gente tocar-lhe ao de leve, faz o contrário das sensitivas e estende as folhas. Daí a um quarto de hora falávamos animadamente."

(Fernando Assis Pacheco, 7.2.68)

domingo, setembro 29, 2013

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"Deep down, I'm a pretty happy guy. Happiness is the relief of pain, they say, and so I guess I'm a pretty happy guy. The relief of pain happens to me pretty frequently. But then so does pain. That's why I get lots of that relief they talk about, and all that happiness."

(Martin Amis, Money)

sábado, setembro 28, 2013

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"Felizes aqueles que se abandonam ao sono sem temores, aqueles a quem o sono apenas traz doces sonhos."

(Bram Stoker, Drácula)

quinta-feira, setembro 26, 2013

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"Mas se a atitude de Herberto celebra a autonomia do campo literário e contesta a feira das vaidades, também suscita o paradoxo do «homem invisível», apresentado por João Pedro George no seu estudo O Que É Um Escritor Maldito? (Verbo, 2013). Escreve George: «Quando um poeta como Herberto Helder se nega conceder entrevistas e a deixar-se fotografar, preferindo a sombra e rejeitando todos os faustos públicos, tornando-se assim numa espécie de 'homem invisível'», então o escritor não está apenas a exercer «uma forma de protesto que pretende romper a dinâmica das trocas e das relações mundanas entre os agentes do meio literário»; na verdade, ele também aceita que se produza um efeito previsível que é o «fascínio»: como diz George, «não há culto mais puro e mais profundo que o culto por aquilo que não se conhece (não ter cara nem corpo é um princípio do divino)»."

(Pedro Mexia, Revista LER, Setembro 2013)

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O neoliberalismo prevalecente considera-se o futuro e diz que a esquerda é o passado. Sente-se quê, com tudo isto: ofendido, indignado?
- Nem ofendido, nem indignado. Todas as ideologias se consideram futuro e ai delas se não se considerassem. No caso do neoliberalismo trata-se de um simplismo defensivo dum comportamento político que vê a história a prazo imediato e que acha que uma sociedade pragmática e culturalmente invertebrada se pode prolongar por muito tempo.

(José Cardoso Pires, entrevistado por Artur Portela, em 1990)

José Cardoso Pires

Olhar atento
mão certeira.
No verbo sangue e tempo demorados
por muito amar
forte castiga
.

(Maria Lúcia Lepecki, Os Meus Amigos)

domingo, setembro 22, 2013

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"Pesa-me como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto está viva. Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo – e onde se perde e esquece. EU! Ora este «eu» é para morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada. Sei-o com a certeza do meu equilíbrio interior. Mas como é possível?"

(Virgílio Ferreira, Aparição)

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"Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro. De que poderia falar na conferência? Nada mais há na vida do que beber até ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez. Riqueza ou miséria, ciência, glória, vexame, e a política e até a arte para tantos artistas, conhecimento do homem no corpo e no espírito – quantos modos de esquecer ou de não saber ainda o pequeno problema fundamental. Mas o que é extraordinário e me exaspera é que eu próprio tenha precisado de uma vida inteira para o saber. E quantas vezes agora o esqueço? O mais forte em nós é esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se… Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas – e esse homem sou eu…

E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. Como pensar que «eu poderia não existir»? Quando digo «eu», já estou vivo… Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse «não existir»? Como pensar que é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia desde o seu mais longínquo jacto de aparição, este SER-SER que me fascina e às vezes me angustia de terror… E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim…"

(Virgílio Ferreira, Aparição)

sábado, setembro 21, 2013

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"Sempre tive a maior dúvida a respeito de mim mesmo, nunca tive a certeza de ser eu."

(David Mourão-Ferreira)

quinta-feira, setembro 19, 2013

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"Este é um bilhete de suicídio. Quando o puserem de lado (e deverão sempre ler estas coisas devagar, em busca de pistas ou indícios), John Self não existirá mais. Ou em todo o caso é essa a ideia. Nunca se sabe, porém, com os bilhetes de suicídio, não é? No agregado planetário de toda a vida, há muito mais bilhetes de suicídio do que suicídios. Sob esse aspeto são como poemas, os bilhetes de suicídio: quase toda a gente experimenta manejá-los a certa altura, com ou sem talento. Todos nós os escrevemos dentro das nossas cabeças. Normalmente o bilhete é que interessa. Completamo-lo, e depois retoma-se a viagem no tempo. É o bilhete e não a vida que fica cancelado. Ou ao contrário. Ou a morte. Nunca se sabe, porém, não é, com os bilhetes de suicídio. A quem é dirigido o bilhete? A Martina, a Fielding, a Vera, a Alec, a Selina, a Barry - a John Self? Não. É dirigido a vocês que por aí andam, os queridos, os gentis."

(Martin Amis, Dinheiro)

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"A alienação do espectador em proveito do objecto contemplado (que é o resultado da sua própria actividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive."

(Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo)

sábado, setembro 14, 2013

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"Para mim, o doutor Cavaco Silva é uma pessoa altamente odiosa devido a essa arrogância toda que tem. É um homem que, se não tivesse sido o 25 de Abril, seria um mediano professor de Economia, um funcionário do Banco de Portugal, que nem teria chegado, por exemplo, a governador desse Banco. Sob certos aspectos, para mim, uma pessoa como o Cavaco Silva é pior que o Salazar, porque tem as mesmas ambições autocráticas, só que não as assume. O Salazar detestava a democracia, não jogava o jogo democrático, por consequência nós sabíamos em que lugar é que ele estava. O Cavaco, e os 'cavaquinhos', e os 'cavacotes', e os 'cavacotos' e toda essa 'cavacada' que para aí há são 'salazarinhos', 'salazarescos','salazarotes' que fingem jogar o jogo democrático."

(David Mourão-Ferreira, em entrevista a Graziana Somai, 1993)

terça-feira, agosto 27, 2013

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"Nesta ocasião, que estou a analisar-me, assalta-me uma dúvida: talvez não gostasse tanto do tabaco senão pela vantagem de lhe assacar a culpa da minha incapacidade. Quem sabe se, deixando de fumar, eu chegaria realmente a ser o homem ideal e forte que supunha? Foi decerto esta dúvida que me prendeu ao vício: é uma forma cómoda de viver, esta de se julgar grande em potência." (Italo Svevo, A Consciência de Zeno)

terça-feira, agosto 13, 2013

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"- Por que raio é que adias sempre tudo? - Tudo, o quê? - Sei lá. Mas ficas para aí sentado nessa cadeira de balouço, na calma, com um livro no peito, deixando o tempo passar, quando há milhares de coisas que podias fazer."

(Saul Bellow, As Aventuras de Augie March)

quinta-feira, agosto 08, 2013

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"I offer her that kernel of myself that I have saved, somehow - the central heart that deals not in words, traffics not with dreams and is untouched by time, by joy, by adversities."

(Jorge Luis Borges, História Universal da Infâmia)

terça-feira, julho 30, 2013

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" [...] só demasiado tarde logrou libertar-se das impaciências juvenis e percebeu que a única salvação reside no aplicar-se às coisas que existem."

(Italo Calvino, Palomar)

terça-feira, julho 23, 2013

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"Não é de todo necessário levantar voo para se atingir o âmago do Sol, o que interessa é rastejar pelo chão até se encontrar um lugar decente onde por vezes o Sol brilhe e onde se consiga um tudo-nada de calor."
(Franz Kafka, Carta ao Pai)

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É-me impossível ignorar a forma como alguns comentadores de serviço se expressam nas televisões sobre as incríveis três últimas semanas da política portuguesa: não há um palavrão, um berro, um murro na mesa, um mínimo transtorno; ao invés da irritação, da zanga, ou quiçá da fúria, deparo-me com uma surpreendente imobilidade do corpo, uma inexpressão da fácies, um tom monocórdico da voz; combinação que parece dar a entender que, mais do que observarem desapaixonadamente uma realidade esdrúxula, analisam uma série de eventos perfeitamente banais, até mesmo aborrecidos, e que o melhor que tenho a fazer é deixar-me embalar, tranquilamente, pelo vazio das emoções, e adormecer, serenamente, num desejável lugar de esquecimento...

sábado, julho 20, 2013

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Leio e oiço os comentadores de serviço e apercebo-me de que: depois da demissão de Vítor Gaspar e da assunção do fracasso de todas as suas políticas; depois da demissão irrevogável de Paulo Portas, líder do segundo partido da coligação; depois do falhanço nas negociações com vista ao encontro de um "compromisso de salvação nacional", no seguimento de um delírio de Cavaco Silva que incluía eleições antecipadas a prazo, resultante da rejeição de uma nova estrutura governativa apresentada por Passos Coelho; depois de tudo isto, subitamente, a opção governo remodelado torna-se aceitável ou mesmo inevitável, e a continuidade das políticas volta a ser inquestionável...

terça-feira, julho 16, 2013

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"Esta foi a primeira vez que alguém me disse alguma coisa que possa ser considerada verdadeira a meu respeito. Senti isso com toda a força. Senti que, como ele disse, tinha efectivamente um sentimento de oposição dentro de mim, e um enorme desejo de oferecer resistência e de dizer 'Não!' que não podia ser mais claro, uma sensação tão inequívoca como uma pontada de fome. Esta descoberta, que só podia ter sido feita por alguém que se havia dado ao trabalho de pensar em mim - de pensar em mim -, encheu-me de amor por ele."

(Saul Bellow, As Aventuras de Augie March)

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"I do things like get in a taxi and say, «The library, and step on it.»” (David Foster Wallace, Infinite Jest)

quinta-feira, julho 11, 2013

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"Chegou a hora da responsabilidade dos agentes políticos." (Cavaco Silva) Só está a contar a partir de agora?

quarta-feira, julho 10, 2013

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Além da caldeirada que para aí vai, e que a malta vai discutindo, o discurso do Aníbal deixou-me com uma dúvida marginal... O tipo diz que eleições antecipadas imediatas poderiam comprometer aquilo que já foi conseguido... Ora, é aí que me perco: mas o que é que já foi conseguido?

terça-feira, julho 09, 2013

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"'Mario, what do you get when you cross an insomniac, an unwilling agnostic and a dyslexic?'

'I give.'

'You get someone who stays up all night torturing himself mentally over the question of whether or not there's a dog.'"

(David Foster Wallace, Infinite Jest)

segunda-feira, junho 24, 2013

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"E quando acaricio a cabeça do meu cão, sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique."

(Clarice Lispector, A Hora da Estrela)

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C: Nelson, você se referiu à solidão. Você se sente um homem só?
N: Do ponto de vista amoroso eu encontrei Lúcia. E é preciso especificar: a grande, a perfeita solidão exige uma companhia ideal.

(Entrevista de Nelson Rodrigues a Clarice Lispector, 1968)

segunda-feira, junho 17, 2013

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Prepara a revolução armada há meses. Sozinho. Não quer cá confusões. Gosta das coisas à sua maneira. "Se quero bem feito, faço eu", diz amiúde. Está quase tudo pronto. Quase... Só há um problema: as políticas de austeridade e os sucessivos cortes no seu rendimento mensal reduziram drasticamente a capacidade de financiar o ambicioso projecto de transformação social. Feitas as contas, o dinheiro já só lhe chega para uma bala. Apenas uma bala: pelo que a dúvida se instala... "A qual dos bandidos devo apontar? Cavaco? Passos Coelho? Gaspar?" Enquanto limpa cuidadosamente as lentes da mira telescópica da sua espingarda de longo alcance, vai imaginando que tiro terá maior probabilidade de instaurar o caos que precede a sua ideia de um novo Portugal. "Não posso falhar"...

sexta-feira, junho 14, 2013

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"Durante o caminho, despedaçou-lhe a alma a quase absoluta certeza de que nunca poderia exprimir, nem com alusões, e ainda menos com palavras explícitas, nem sequer com o pensamento, os momentos de fugaz felicidade que tinha consciência de ter atingido."
(Enrique Vila-Matas, Suicídios Exemplares)

quarta-feira, junho 12, 2013

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"Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens."
(J. L. Borges, O Livro)

quinta-feira, junho 06, 2013

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"Há uma velha história acerca de um trabalhador suspeito de roubar no trabalho: todas as tardes, quando sai da fábrica, os vigilantes inspeccionam cuidadosamente o carro de mão que ele empurra, mas nunca encontram seja o que for. Até que um dia se descobre a trama: o que o trabalhador rouba são carros de mão!" (Slavoj Zizek, Violência)

quinta-feira, maio 23, 2013

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Acabei de acordar sobressaltado. Ainda não estou em mim. Sonhei que assistia ao Big Brother, que os concorrentes eram Cavaco e os membros do Conselho de Estado, e que eu via e ouvia tudo o faziam e diziam; enquanto isso, no meu sonho, Zezé Camarinha e companhia reuniam-se em Belém à porta-fechada...

terça-feira, maio 07, 2013

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"Outra coisa que sei é que não se deve pedir de mais aos livros. Também eu, nos inquietos anos da juventude, exigi dos livros que transformassem o Mundo e das palavras que me dissessem o que julgava que sabia. Depois fui aprendendo, lendo livros, que a sabedoria das palavras é feita de irrisão e de silêncio, de liberdade e de desnecessidade, e que, mesmo que as palavras e o livros possam transformar o Mundo, nem as palavras nem os livros gostam de ser empurrados."

(Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura)

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"De regresso ao meu cadeirão, mal-humorado, e olhando de novo aqueles oligarcazinhos de meia tigela, que bebiam e comiam de tudo com tão boa boca, avidamente metidos até ao gasganete em negociatas de batatas ou de batotas, em tráficos de terrenos ou de terrores, acudiu-me a conclusão de não ser por acaso que «poder» e «podre», em português, se escrevem fatalmente com as mesmas letras."

(David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz)

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A longa caminhada deixara-lhe a garganta seca. Ainda havia tempo, pelo que tratou de abancar numa esplanada para molhar o bico. As luzes vermelhas dos néons do concessionário, do outro lado da estrada, transportaram-no de imediato para o fogoso encontro da noite anterior... Usada e em bom estado, pensou - assim se poderia também definir a Glória, mulher rodada e enxuta que uma vez por semana lhe vendia o amor às prestações na rua da Esperança. Meditava sobre essa outra sede, essa outra insaciável: a falta que faz uma mulher, constatou, a falta que faz...

- Uma água com gaja, por favor... Com gás, uma água com gás, e com muito gelo - tentou emendar...

sexta-feira, maio 03, 2013

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"The more powerful and original a mind, the more it will incline towards the religion of solitude." (Aldous Huxley)

sexta-feira, abril 26, 2013

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"Bem me dizia uma senhora, era mesmo uma senhora, em casa de quem eu andei a trabalhar, mas que depois, coitadinha, acabou por dar em droga: que é preciso a gente meter-se o mais que possa em vale de lençóis, a dormir ou a fazer outra coisa, o Mestre entende-me, para ao menos deixar a gente de pensar que esta vida é um vale de lágrimas."

(David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz)

segunda-feira, abril 22, 2013

Afinidade

"Sentimos uma afinidade com certo pensador porque concordamos com ele; ou porque nos mostra o que já pensávamos; ou porque ele nos mostra de modo mais articulado o que já pensávamos; ou porque nos mostra o que estávamos perto de pensar; ou o que mais cedo ou mais tarde pensaríamos; ou o que teríamos pensado muito mais tarde se o não tivéssemos lido agora; ou o que seria verosímil que pensássemos, mas nunca teríamos pensado se o não tivéssemos lido agora; ou o que teríamos gostado de pensar, mas nunca teríamos pensado se o não tivéssemos lido agora." (Lydia Davis, Contos Completos)

sexta-feira, abril 19, 2013

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"Tu, aos vinte anos. Depois, aos vinte e dois, já tão revolucionariamente liberta dos preconceitos de dois anos antes que até condescendeste, a meu pedido, durante as férias grandes na Foz do Arelho, a que por mais de uma vez te visse inteiramente nua, dentro da barraca de lona isoladamente armada diante do mar, aonde ofegantes chegávamos, manhã cedo, por caminhos diferentes, com um avanço de mais de duas horas sobre a hora de chegada das tuas tias (e era preciso que eu entretanto me escapasse para junto da lagoa, e a toda a gente desse a impressão de que tinha vindo directamente da povoação da praia), mas que minutos esses - ah, que minutos fabulosos! - a ardermos de febre e a tremermos de frio na manhã invariavelmente enevoada, completamente nus, e de pé, perturbados, extáticos, um ao lado do outro, um defronte do outro, de uma das vezes mesmo ambos deitados na areia húmida quase por cima um do outro, e tu com a boca torcida, os olhos alterados, as coxas apertadas em torno da minha mão, mas sem receio já de por instantes gemeres, e eu maravilhado e orgulhoso, deslumbrado e confuso, ao mesmo tempo quase em pânico, por tão de súbito verificar que também vibravas, e que não eram só as outras, venais ou não, já bem rodadas, muitos experientes, que entre as coxas detinham o monopólio do prazer." (David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz)

terça-feira, abril 16, 2013

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"O berço baloiça por cima de um abismo e o senso comum diz‑nos que a nossa vida mais não é do que uma brecha de luz entre duas eternidades de treva. Apesar de gémeas idênticas, vulgar será que o homem olhe com maior calma o abismo pré‑natal do que o outro para o qual se dirige (a qualquer coisa como quatro mil e quinhentas batidas de coração por hora). Sei no entanto de um jovem cronófobo que entrou numa espécie de pânico quando viu pela primeira vez cenas filmadas em sua casa, semanas antes de ter nascido. Viu um mundo praticamente igual — a mesma casa, as mesmas pessoas — mas reparou que ele próprio ainda lá não estava nem havia quem lamentasse a sua ausência. De relance viu a mãe dizer adeus na janela do andar de cima, e esse estranho gesto perturbou‑o como se fora uma misteriosa despedida. Porém, o que mais o assustou foi a imagem de um carro de bebé com o ar pretensioso, com o ar abusivo de um esquife, novinho em folha e parado no vestíbulo; também ele vazio, como se os seus próprios ossos, nessa corrida inversa de factos, se tivessem desintegrado."

(Vladimir Nabokov, Fala, Memória)

quarta-feira, abril 10, 2013

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"Tenho comigo a fotografia de 38 onde nos assemelhamos a dois jovens noivos e é sempre com um nó na garganta que olho esta imagem da nossa passada felicidade!... [...] Partirmos dos dois de mochila às costas cmo quando eramos jovens!... Alpes, Pyreneos, Bretanha - é loucura aquilo que se pode aspirar na vida quando se vai morrer...
Sabes que muitas vezes falávamos de uma filhinha... Que tortura para mim, hoje!... [...] Vês tu, perante a morte, é a vida contigo o que mais me tortura. [...]
E agora, meu amor, vida minha, é preciso deixar-te, dizer-te adeus para sempre. [...]
Adeus pequena... adeus a todos os lugares em que nos amámos."

(Cartas de Fuzilados, Maurice Lacazette, 20.02.1943)

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"Pelo caminho, ao atravessarmos não sei que praça, chegaram-nos ao ouvido os sons de um violino de cego, estropiando uma linda ária. E Ricardo comentou:
- Ouve esta música? É a expressão da minha vida: uma partitura admirável, estragada por um horrível, por um infame executante..."

(Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio)

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"A loucura, objecto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente."

(Machado de Assis, O Alienista)

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"Quando receberem esta carta, já terei sido executado [...]. A vida sobre a terra separou-nos mas é preciso que saibas que o meu pensamento estará sempre contigo. Querida Gilberte, peço-te que sejas corajosa como sempre tens sido, para bem da nossa querida filha. Morrerei com a sua fotografia, tirada no jardim, entre as mãos."

(Cartas de Fuzilados - Louis Chapiro, 11.01.1944)

quarta-feira, março 27, 2013

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Entro no metro. Encosto-me à porta do lado contrário, um solavanco, e aí vamos nós: uns parecem perdidos dentro das suas cabeças, olhos postos num vazio; outros falam, quase todos ao telemóvel; há quem mande mensagens, muitos ouvem música...

Reparo num jovem casal, de pé, lado a lado, no fundo da carruagem. Sorriem, as mãos dadas. Não são fones que levam nos ouvidos. São estetoscópios... Os fios cruzam-se entre eles, à altura do pescoço, e introduzem-se através das golas da camisolas um do outro. O dele pela dela. E a dela pelo dele. Assim vão, enquanto os corações baterem...

sexta-feira, março 15, 2013

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"Nothing optional - from homosexuality to adultery - is ever made punishable unless those who do the prohibiting (and exact the fierce punishments) have a repressed desire to participate. As Shakespeare put it in King Lear, the policeman who lashes the whore has a hot need to use her for the very offense for which he plies the lash."

(Christopher Hitchens, God Is Not Great)

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"A melancholy lesson of advancing years is the realisation that you can't make old friends."

(Christopher Hitchens, Unacknowledged Legislation: Writers in the Public Sphere)

quarta-feira, março 13, 2013

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"Faith is the surrender of the mind, it's the surrender of reason [...]. It's our need to believe and to surrender our skepticism and our reason, our yearning to discard that and put all our trust or faith in someone or something." (Christopher Hitchens)

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"Religion comes from the period of human prehistory, where nobody - not even the mighty Democritus who concluded that all matter was made from atoms - had the smallest idea of what was going on. It comes from the bawling and fearful infancy of our species, and is a babyish attempt to meet our inescapable demand for knowledge (as well as for comfort, reassurance, and other infantile needs). Today, the least educated of my children knows much more about the natural order than any of the founders of religion."

(Christopher Hitchens, God is Not Great)

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"In a culture that is becoming ever more story-stupid, in which a representative of the Coca-Cola company can, with a straight face, pronounce, as he donates a collection of archival Coca-Cola commercials to the Library of Congress, that 'Coca-Cola has become an integral part of people's lives by helping to tell these stories,' it is perhaps not surprising that people have trouble teaching and receiving a novel as complex and flawed as Huck Finn, but it is even more urgent that we learn to look passionately and technically at stories, if only to protect ourselves from the false and manipulative ones being circulated among us."

(George Saunders, The Braindead Megaphone)

quarta-feira, março 06, 2013

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"Deixa-me olhar um pouco para o mar. Deixa-me estar um pouco sem tempo, que é a verdade do azul do mar. Deixa-me perder a idade que perdi. Há espaço bastante a todo o horizonte marinho para o bocado de infinito que ainda trago comigo. Há ainda veraneantes na praia para eu daqui tomar banho com eles. Vou respirar fundo, que é o que sempre apetece diante do mar para inspirarmos o universo com a inspiração. Vou ficar a olhar o brilho das águas nos jogos do meu devaneio."

(Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra)

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"Há uma mulher muito viva, chama-se Albertina, talvez conheças, foi corista e mesmo actriz, ela faz questão em repetir. Pergunto-lhe como veio até aqui, ela conta. E então o merceeiro fez-se ao piso - e eu precisava da mercearia, o doutor calcula - e eu calculava. Mas era muito mau na cama. Fazia os seus preparativos, é claro, mas depois quando metia, cuspia logo, e eu ficava em brasa, deve calcular - e eu calculava. Mas tinha um irmão, oh, isso era um homem como nunca há-de haver outro. Eram beijos devagar, era muito lento, sempre, beijos devagar desde as pernas e depois, mesmo onde se não esperava, mesmo aí e com demora, sim senhor, e depois por ali acima e eu estava já a arder e dizia-lhe mete, mete, pelas cinco chagas de Cristo mete já, e ele metia mas sempre devagar. Às vezes tirava ainda ou brincava à entrada e eu já não podia mais e ele sempre metendo por fim até ao fundo e eu dizia-lhe mexe-te, pelo amor de Deus, mexe-te de uma vez e ele enfim começava mas eu já não aguentava mais e rebentava toda por dentro e ele então acelerava e aí eu estoirava duas três dez vezes e eu só lhe dizia acaba tu também, mas ele devagar não acabava e às tantas eu não podia mais e empurrava-o com toda a força mas ele agarrava-se como uma lapa, queria também a sua parte, e muito tempo depois, finalmente, ele dava também o seu estoiro e aí então eu atirava com ele para os infernos com ódio, tinha-lhe raiva de tanto gozo e ele muito calmo vestia-se e quando já se ia embora eu tinha pena ou não sei o que era, e se ele não vinha ter comigo até dois ou três dias, ia eu doida à procura dele.
- E o irmão?
- Não achava mal, ficava tudo em família. E depois eu tinha mais paciência com ele [...]

(Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra)

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"E do lado oposto há um pequeno jardim sem canteiros, digamos um pátio com bancos para a invalidez. Nunca lá vi ninguém, porque a invalidez, para lá chegar, tem de ter ainda um pouco de perna disponível, e a tê-la, prefere levá-la até lá fora e dar-lhe ar."

(Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra)

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"[...] que estupidez querer explicar o ser. Ou o azul. Ou uma cor que não existe e é a tua. Ou a harmonia do repouso da minha vida inteira aí."

(Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra)

segunda-feira, março 04, 2013

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"Hannah Arendt used to speak of ‘the lost treasure of the revolution’: a protean phenomenon that eluded the capture of those who sought it the most. Like Hegel’s ‘cunning of history’ and Marx’s ‘old mole’ that surfaced in unpredictable and ironic places, this mercurial element did quicken my own short life in the magic, tragic years that are denoted as 1968, 1989, and 2001. In the course of all of them, even if not without convolutions and contradictions, it became evident that the only historical revolution with any verve left in it, or any example to offer others, was the American one. (Marx and Engels, who wrote so warmly about the United States and who were Lincoln’s strongest supporters in Europe, and who so much disliked the bloodiness and backwardness of Russia, might not have been either surprised or disconcerted to notice this outcome).

To announce that one has painfully learned to think for oneself might seem an unexciting conclusion and anyway, I have only my own word for it that I have in fact taught myself to do so. The ways in which the conclusion is arrived at may be interesting, though, just as it is always how people think that counts for much more than what they think. I suspect that the hardest thing for the idealist to surrender is the teleological, or the sense that there is some feasible, lovelier future that can be brought nearer by exertions in the present, and for which “sacrifices” are justified. With some part of myself, I still ‘feel,’ but no longer really think, that humanity would be poorer without this fantastically potent illusion. ‘A map of the world that did not show utopia,’ said Oscar Wilde, ‘would not be worth consulting.’ I used to adore that phrase, but now reflect more upon the shipwrecks and prison islands to which the quest has led.

But I hope and believe that my advancing age has not quite shamed my youth. I have actually seen more prisons broken open, more people and territory ‘liberated,’ and more taboos broken and censors flouted, since I let go of the idea, or at any rate the plan, of a radiant future. Those ‘simple’ ordinary propositions, of the open society, especially when contrasted with the lethal simplifications of that society’s sworn enemies, were all I required. This wasn’t a dreary shuffle to the Right, either. It used to be that the Right made tactical excuses for friendly dictatorships, whereas now most conservatives are frantic to avoid even the appearance of doing so, and at least some on the Left can take at least some of the credit for at least some of that. It is not so much that there are ironies of history, it is that history itself is ironic. It is not that there are no certainties, it is that it is an absolute certainty that there are no certainties. It is not only true that the test of knowledge is an acute and cultivated awareness of how little one knows (as Socrates knew so well), it is true that the unbounded areas and fields of one’s ignorance are now expanding in such a way, and at such a velocity, as to make the contemplation of them almost fantastically beautiful. One reason, then, that I would not relive my life is that one cannot be born knowing such things, but must find them out, even when they seem bloody obvious, for oneself. If I had set out to put this on paper so as to spare you some or even any of the effort, I would be doing you an injustice."

(Christopher Hitchens, Hitch 22)

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"For a lot of people, their first love is what they'll always remember. For me it's always been the first hate, and I think that hatred, though it provides often rather junky energy, is a terrific way of getting you out of bed in the morning and keeping you going. If you don't let it get out of hand, it can be canalized into writing. In this country where people love to be nonjudgmental when they can be, which translates as, on the whole, lenient, there are an awful lot of bubble reputations floating around that one wouldn't be doing one's job if one didn't itch to prick." (Christopher Hitchens)

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"My own opinion is enough for me, and I claim the right to have it defended against any consensus, any majority, anywhere, any place, any time. And anyone who disagrees with this can pick a number, get in line, and kiss my ass." (Christopher Hitchens)

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"The only position that leaves me with no cognitive dissonance is atheism. It is not a creed. Death is certain, replacing both the siren-song of Paradise and the dread of Hell. Life on this earth, with all its mystery and beauty and pain, is then to be lived far more intensely: we stumble and get up, we are sad, confident, insecure, feel loneliness and joy and love. There is nothing more; but I want nothing more."

(Christopher Hitchens, The Portable Atheist)

terça-feira, fevereiro 26, 2013

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"Um dia eu disse-te um corpo. Um corpo forte. Tudo o mais vem daí. A força. A segurança. E tu disseste que nem sempre. Mas era o teu feitio - dizeres o contrário do que eu dissesse. Está a chover e eu digo - vamos ter chuva. Muito sabes tu, dizias, amanhã pode estar sol. Está sol e eu digo vem aí o bom tempo. Ora, está aqui está a chover outra vez. Para te ter de acordo comigo às vezes dizia o contrário do que pensava e tu dizia o contrário do que eu dizia e concordavas comigo sem o saberes."

(Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra)

quinta-feira, fevereiro 21, 2013

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«Teve uma infância estranha», disse Austin. «Em última análise, todas as infâncias o são», disse Mister DeLuxe. «Molero diz», disse Austin, «que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que o transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, asa tenra batendo à chuva.»

(Dinis Machado, O que diz Molero)

quinta-feira, fevereiro 14, 2013

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Era um vez um comerciante honesto, amante do seu País, homem recto e simples (lento, diriam alguns), incapaz de ler nas entrelinhas, fiel a todos os poderes instituídos, zeloso dos seus deveres, e que decidiu um belo dia começar a denunciar os seus clientes que não lhe exigiam factura...

terça-feira, janeiro 08, 2013

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O autocarro pára em Alcântara, vindo do centro da cidade. As portas abrem-se e entra uma senhora estridente:
- "Passa na Praça de Espanha?"
- "Isso é do outro lado", esclarece o motorista. Visivelmente perplexa e ligeiramente assustada, pergunta:
- "Qual outro lado?"

Não resisto: levanto-me do meu lugar junto à porta, ergo os braços de mãos abertas e, curvando-me sobre ela, agito os dedos e arrasto uma voz intencionalmente cavernosa:
- "Do laaadoo de láááááá, uuuhhhh, ah ah ah AH AH..."